sexta-feira, 29 de junho de 2007

Gay no futebol só como torcedor?


Futebol é coisa de macho, certo? Certo para os machistas e homofóbicos. Errado para quem considerar o futebol também como esporte preferido de homossexuais. Eles só podem participar fora do campo, como torcedores nas arquibancadas dos estádios ou na poltrona de suas casas. Como jogador, nem pensar, embora Dadá Maravilha, heterossexual, jogador da Seleção Brasileira na década de 70 revelar que, naquela época, já existiam muitos jogadores gays. Ele inclusive já foi cantado por um colega de equipe que adorava suas pernas.

Se naquele período de repressão sexual o babado já rolava nos vestiários, imagine agora, com abertura e afirmação homossexual em cada esquina, embora ainda com restrições violentíssimas de homofóbicos de plantão, com porrete e revólver na mão.

A polêmica agora eclodiu, veio à tona, quando o diretor administrativo do Palmeiras no programa "Debate Bola" (Record), insinuou que Richarlyson (foto), jogador do São Paulo, seria gay. Quando indagado se na equipe palmeirense havia algum atleta homossexual, respondeu: "O Richarlyson quase foi do Palmeiras".

Segundo matéria no Folha Online, a pergunta teria sido feita, depois que divulgaram em um jornal paulista que a equipe do "Fantástico" estaria negociando uma entrevista exclusiva com um jogador de um grande time de São Paulo, na qual ele revelaria sua orientação homossexual. A Globo desmente.

Desmentidos ou não, atos falhos ou não, ninguém acredita de que não existam jogadores gays no futebol brasileiro. Eles estão, é verdade, ainda no armário (dos centros de treinamento, dos vestiários dos estádios, de suas próprias casas...), mas declarações como a de Dadá acima, já sinalizam que o jogador gay pode ser justamente aquele que fez, no último jogo, a alegria dos torcedores ao chutar a bola, pontuar com um lindo gol e tornar o time vencedor da partida...

Segundo comentários, algumas pessoas que convivem com Richarlyson (fora ou dentro de campo) sabem de sua suposta homossexualidade, mas que não deixam de vê-lo como profissional de futebol, inclusive com títulos de campeão em torneios nacionais e estaduais.

Só achei estranho o advogado do jogador, que pretende processar o cartola do Palmeiras por danos morais e materiais, declarar que conhece "a família dele, sua índole e seu caráter há 11 anos, desde que ele começou a jogar". Quer dizer que ser gay é não ter caráter? Há, inclusive, muitos heterossexuais canalhas.

Por ser um esporte com maioria masculina, assim como nas Forças Armadas, existe uma certa fascinação dos homossexuais por seus praticantes... Quantas vezes, em revistas de nu masculino, jogadores já se despiram para os gays? Vampeta, por exemplo, foi um deles. Questionaram inclusive se ele era realmente heterossexual, só pelo fato de posar para "GMagazine". A justificativa de alguns foi a de que só de imaginar que um outro homem terá sonhos eróticos com o jogador, depois de publicadas as fotos, já é indício de que ele seria gay, pois se satisfaz com esta exposição pública de sua nudez. Houve até dirigentes de times de futebol que proibiram seus jogadores de posarem nus. Do contrário, demissão. "Nem para revistas femininas?", perguntariam os jogadores-modelos. "Não! Os gays são os que mais compram revistas de nu masculino", argumentariam os cartolas desconfiados. A sexualidade humana é tão complexa... Freud já tentou explicar.

Há gays que praticam futebol tanto pela atividade física, desportiva ou profissional, quanto pelo prazer de estar ao lado de outros homens, do contato corporal, pela virilidade. Fora do campo, gostam do esporte tanto como torcedores de times, quanto admiradores da beleza ou porte atlético dos jogadores. Existem homens que não suportam nem ouvir falar em futebol, nem por isso deixam de ser heterossexuais.

Mas há também gays e heterossexuais homofóbicos, que torcem, por exemplo, para o São Paulo Futebol Clube. Como as torcidas organizadas, em sua maioria, são bastante radicais em seu furor gremista e, não raro, serem células de atos criminosos e de vandalismo, eu temo pela segurança de Richarlyson, mesmo que ele nem seja realmente gay...

O machismo é cego e letal.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Da janela se vê o mar - conto

uma história sobre amor de homens

Para Diomedes, in memoriam



Não o amor, mas os arredores é que valem a pena...
Fernando Pessoa

Passava em frente à cafeteria onde costumávamos tomar capuccino com torta de morango. No exato momento em que observava os enfeites luminosos de Natal da entrada, um cliente abriu a porta e pude ver rapidamente a mesa onde eu e Juliano sentávamos. Aquele cantinho era o lugar para atar ou desatar os nós de nossos sentimentos. Lembranças vêm assim, num turbilhão de emoções que nos deslocam. Estava com pressa, tinha de me encontrar com meu novo namorado, mas parei por uns segundos no meio da calçada. Fiquei em suspensão pelos fios da memória... Uma marionete manipulada por Juliano que me levou para dentro do Café Atlântico. Foi ele mesmo quem o descobriu, meio escondido numa rua sem movimento do Centro. O garçom me reconheceu, deu aquele sorriso receptivo e apontou para a mesa como se eu a tivesse reservado. Embora os donos, um casal gay de Porto Alegre, tivessem feito uma reforma no interior, ampliando a entrada, nem a decoração nem o clima acolhedor mudaram. As cadeiras de veludo salmão continuam tão confortáveis quanto antes e as mesas ainda tinham tampo de vidros translúcidos. Podíamos ver nossos pés se cruzarem e se acariciarem debaixo da mesa quando nos reconciliávamos. Ou nervosos e distantes quando não conseguíamos nos entender.

- Não, não espero por ninguém, respondi ao garçom.
- Cadê aquele seu amigo?
- Juliano? Meu ex-namorado?
- É.
- Não o vejo há meses.
- Ah.. Vai pedir torta de morango e capuccino sem chantilly?
- Com chantilly, Juliano era quem não gostava.
- Ah, desculpe, é que depois de tanto tempo... Com licença.

No primeiro salão, onde eu estava, só havia um jovem sentado perto da janela. Sobre a mesa, um envelope de carta pequeno. Ele parecia tenso, ansioso. Roía as unhas e mergulhava diversas vezes o saquinho de chá na caneca vazia. Olhava para fora, esticava o pescoço para ver melhor a rua, passava a mão pelos cabelos compridos. Fazia um estilo grunge. Tinha um jeito meio rebelde, de afronta, devia ter uns dezessete, dezoito anos.

Na parte dos fundos, ficava a área para fumantes, mais cheia. Ninguém conhecido. Decidi ficar apenas quinze minutos, mas todos meus sentidos tinham sido invadidos por fragmentos de um tempo que eu insistia em não mais retomar. Juliano me prende nessa cafeteria, por quê? Precisava de uma tesoura para cortar aqueles fios que me impeliam a comer a torta e a sentir o gosto de sua boca agridoce-morango, era mais gostosa a torta ou sua língua açucarada?

- Mais alguma coisa?, perguntou o garçom.
- Hã?! Não.
Lembrei-me dos momentos em que eu chegava antes de Juliano e ficava na expectativa de vê-lo entrar de sorriso largo, como o do cara que entrou agora... Ele se dirigiu para a mesa do jovem de cabelos compridos. Os lábios cerrados de um não se correspondiam com o brilho do sorriso do outro. Os tais nós precisavam ser atados naquela mesa. Tão logo se sentou, o rapaz do sorriso recebeu a carta. Tentei ouvir o que falavam, mas a voz de Teresa Salgueiro, de Madredeus, desviou minha atenção para um pôr-de-sol deslumbrante em Lisboa, à beira do Tejo. Foi lá que conheci Juliano. Eu estava em pé, na mureta de proteção do cais, e ele sentado na ponte de atracação, poucos metros à minha frente. Com fones no ouvido, distraía-se com uma música. Os óculos escuros impediam que eu visse seus olhos, não sabia se olhava para mim fixamente ou se cochilava, o que era perigoso, porque poderia cair no rio. Depois de alguns minutos, quis conhecê-lo e fui até lá. Toquei em seus ombros largos e musculosos. Ele desligou o cd portátil, tirou os óculos e abriu um sorriso encantador.

- Não é perigoso você sentar aí, pode cochilar e...
- Teria você pra me salvar.
- Salvaria sim, ainda faria respiração boca a boca.
- É a melhor parte do salvamento...

Rimos de nossa própria ousadia. Dois estranhos, que nem seus nomes foram revelados, já se ofereciam sem restrições. Não estávamos ali apenas para ver o fim de tarde, mas procurando também uma companhia para nossa solidão. Fosse para um bate-papo casual fosse para um sexo rápido num motel barato, decidimos ir ao Cais Sodré no momento certo. Ele era estudante de intercâmbio na cidade, eu passava férias em casa de amigos. Nossas afinidades iam além do gosto de ler Pessoa e Quintana, assistir a Almodóvar e Winders, ouvir Madredeus e The Cranberries; elas convergiam para o mesmo prazer de um estar olhando para o outro. Tínhamos encontrado em cada um o que há tempos procurávamos. E já saímos dali apaixonados. Subimos para o Bairro Alto e jantamos num restaurante de onde pudemos observar o Tejo até a Torre de Belém... Toda cidade tem um cheiro, e Lisboa nesse momento exalava um perfume cítrico-amadeirado que me inebriava, ou seria o perfume de Juliano que se espalhava por onde passávamos? Só sei que senti uma vontade de abraçá-lo com força, e o fiz como quem tinha a certeza de que um dia poderia perdê-lo... Lisboa compunha nossa geografia durante os dias em que percorríamos suas ruelas, ladeiras e miradouros, como um casal feliz em lua-de-mel. Em outros momentos, como o da cafeteria, quando era grande o silêncio e eu aguardava o milagre num sonhar acordado, Lisboa se instalava de novo em mim. Embora não nos víssemos mais, nem sabia se ele estava em Salvador, louvava a saudade por alguns minutos, talvez com desejo de reencontrá-lo para ver de novo seu sorriso...

O toque do celular me trouxe para a realidade, era meu namorado que já me esperava na saída do trabalho... O café tinha esfriado, só comi mais um pedaço da torta e pedi a conta ao garçom. Junto com a despesa, veio um bilhete.

- De quem é?
- De um daqueles dois que estavam sentados ali.
- Quem?
- O que parecia com aquele seu amigo.
- Juliano?
- Acho que era ele.

Abri o bilhete e reconheci a caligrafia. Meu Deus! Com que olhos eu estava que não o vi? Por que não falei com ele? Na sala, outras pessoas conversavam; a mesa encostada à janela estava agora ocupada por uma velha, que tomava um suco. Virei a cabeça para procurá-los na sala de fumantes, e nada. No bilhete, a mensagem: O Tejo desaguou nossas lembranças no mar, não sabemos em que praia irão aportar... Juliano.

- Eles já foram há muito tempo?
- Quase uma hora.
- Como, se estou aqui há pouco mais de quinze minutos?
- Não, há mais de meia hora.
- Ah, devo ter perdido a noção do tempo... Foi a primeira vez que você os viu juntos?
- Sim.
- Eles brigaram?
- Houve um pouco de discussão no começo, mas terminaram felizes.
- E a carta?
- Rasgada sobre a mesa, logo depois que saíram joguei no lixo.
Paguei a conta e saí às pressas. O bilhete na mão, amassado e molhado de suor, provava que Juliano estava mais perto de mim do que imaginava. Aquele cara não era o mesmo Juliano, só o sorriso é que parecia, ou era de verdade? Se fosse ele, ainda assim tinha emagrecido, deixou a barba crescer, usava uma boina, roupas diferentes... Por isso não reconheci.

Da mesma forma que começamos o namoro, sem delongas, ele se afastou como se fugisse de algum mal. Confesso que uma das últimas reconciliações, depois de desentendimentos por causa de algumas revelações que eu fiz, o nó não foi totalmente atado, ficou ainda frouxo. Ele disse que visitaria parentes no interior, voltou depois de uma semana e não me ligou. Procurei diversas vezes em sua casa, dei telefonemas, escrevi cartinhas... Nenhuma resposta. Recebia informações desencontradas de que estava com outro amor, seria o jovem de cabelos compridos?, de que passava dias ali e acolá em casa de amigos que eu nunca tinha ouvido falar, de que voltou para Europa...

- Onde você estava?, perguntou com raiva o meu namorado.
- Desculpe, meu bem, é que tive de fazer uma coisa importante.
- Você sempre se atrasa... O que foi dessa vez?
- Coisas minhas.
- Vamos agora fazer o quê? Perdemos a sessão das 18, agora só a das 21.
- O que você sugere?
- Tem uma cafeteria aqui perto que há muito tempo não vou. Vamos dar um tempo lá.
- Que cafeteria?
- Atlântico. Lá você me explica melhor que “coisas minhas” são essas que estava resolvendo.
- Por que não vamos pra minha casa? Assistiremos ao filme amanhã.

Não foi fácil convencê-lo a desistir do cinema e, principalmente da cafeteria. Aquele lugar me transforma, perco o sentido. Ao contrário de Juliano, Gustavo tinha poucas afinidades comigo, era mais nervoso e exigente. Seus ciúmes chegavam a ser mais constrangedores do que os de Juliano. Era grosseiro e intempestivo, mas sincero. Juliano era fingido e escorregadio, mas educado. Fomos para meu apartamento, onde pudemos ficar mais à vontade. Como dizer a ele que eu estava com um amigo, sem ter estado? Seria capaz de me matar se dissesse que foi com meu ex-namorado, de quem não queria ouvir falar. Dizia ele que Juliano não foi homem o suficiente para me assumir, que fugiu envergonhado quando soube que eu era transexual. Para evitar mais frustrações, disse logo a Gustavo quem eu era quando o conheci. “Nunca amei tanto uma mulher”, me falava sempre ao final de um pedido de perdão por causa de um desatino seu. Falaria o mesmo depois de brigar comigo quando explicasse as tais “coisas minhas” que me fizeram atrasar o encontro. E falou mais: “Quero ter um filho com você.”

Não era tão forte quanto Juliano, mas me levou sem nenhum esforço para a cama. Abrimos o vinho que compramos para a ceia de Natal e tomamos entre um beijo demorado e outro, entre um sussurro e outro, entre um riso e outro. Atravessamos a noite bêbados de amor e sexo. Em um momento apenas me lembrei de Juliano. Ele nunca me fez sentir um gozo tão profundo e verdadeiro quanto Gutinho me fez naqueles milésimos de segundos. Eu me rendi completamente a ele. Sim, teremos um filho, falei baixinho no seu ouvido. Você é minha mulher, declarou ele.

Enquanto Gustavo tomava banho, vesti meu roupão e abri a janela da sala. Era madrugada ainda, mas aos poucos a silhueta da ilha de Itaparica aparecia do fundo da baía em meio à névoa. Mais perto de mim, logo em frente, o mar rolava na praia algas, sargaços, espumas, conchas e lembranças...

Talvez ali mesmo eu cavasse um buraco e enterrasse o bilhete de Juliano...

sábado, 16 de junho de 2007

Festa no Reino de Ariano


Hoje, o paraibano (e paraibense, porque ele nasceu na antiga Cidade da Parahyba, atual João Pessoa) Ariano Suassuna faz 80 anos.

Um tento para ele, que ainda está lúcido e em atividade, e um orgulho para nós todos, leitores de suas obras. Ariano é um pop star da literatura brasileira contemporânea. Não precisa ter milhões de livros publicados em inúmeras línguas para ser reconhecido, como muitos se jactam por aí...

Basta apenas ter erudição sincera, envolvente, participativa e festiva, como tem Ariano... Isto está em seus livros e na sua fala, quando faz suas aulas públicas em eventos literários pelo País.

Eu assisti a uma dessas aulas de literatura brasileira em João Pessoa, no Teatro Santa Rosa, quando, em 2002, fazia mestrado na UFPB e morava na cidade. Foram duas horas de passeio por nossas letras nacionais, de Gregório a Euclides da Cunha (este, confessadamente, seu escritor preferido).

Nesta aula, aprendi com Suassuna que, não adianta incentivar a leitura, estimular os outros a gostarem de literatura, se o professor não lê, não conhece aquilo que leciona. (Lembro-me de um verso de Mario Quintana: "Os verdadeiros analfabetos são aqueles que sabem ler e não lêem")

É preciso ter paixão pelos livros. E Ariano dá lições de como ser um apaixonado pela literatura e, por extensão, por sua literatura. No Reino de Ariano, ele é quem rege o tempo e o espaço da ficção, uma realidade possível, que nos encanta pelo engenho e arte com que reinventa para nós.

A microssérie "A Pedra do Reino" (http://quadrante.globo.com/), ora em exibição na Globo, é uma primorosa adaptação da obra monumental de Ariano. Pense no trabalho em adaptar mais de 700 páginas de romance para apenas cinco capítulos de 40 minutos cada!

Li algumas críticas de que Luiz Fernando Carvalho estragou a festa dos 80 anos de Ariano com a microssérie. A linguagem realista-fantástica, com a qual o diretor se afirma na televisão (vide a outra microssérie "Hoje é dia de Maria"), quando se coaduna com a mesma linguagem já presente na obra, a partir da qual ele constrói sua narrativa, como é o caso de Ariano, o resultado pode causar estranhamento, mais do ponto de vista da rejeição, do que da atração.

Sem dúvida, o elenco, o figurino, o cenário, a interpretação, a música, a fotografia... Tudo nesta microssérie está belíssimo, mas penso que se a programação de dias exibidos fosse mais expandida, pelo menos por mais uma semana, a história poderia ser melhor apreendida, sem a "pressa" com que aparentemente se mostra nas falas e nas cenas.

Às vezes, é quase impossível entender alguns diálogos, porque envolvem um sem-número de personagens envolvidos, assim como referências a episódios não mostrados que, para um público de televisão não-leitor de literatura, não-experiente nas artimanhas e idiossincrasias da associação e hibridez das linguagens verbais e visuais, pode ser enfadonho e "sem sentido".

Isso não quer dizer que o público não deve ter contato com outras formas de linguagem televisiva, pois a teledramaturgia brasileira tem seus cacoetes e vícios narrativos que estão exaurindo nossa paciência por ver algo novo.

Toda telenovela apresenta uma estrutura dramática que já é sabida por todos. Se começa diferente, como algo inédito, termina da mesma maneira como as outras. Tudo é previsível. É uma fórmula clássica que, quando rasurada, é possível que as televisões percam audiência e, por conseguinte, dinheiro.

As mini e microsséries são obras fechadas, portanto, têm uma estrutura que difere das telenovelas quanto ao número de capítulos e, geralmente, gravadas antecipadamente e exibidas em datas específicas. As telenovelas podem ser encurtadas ou prolongadas ao sabor dos índices do Ibope.

Sou favorável a exploração de novas formas de narrativas, mesmo que preservando a linha clássica, mas isso não quer dizer que deva ser indecifrável, quase impossível de compreensão. Este público não acostumado a inovações fílmicas na televisão tem que se habituar aos poucos.

Não adianta uma produção espetacular, se o conteúdo da mensagem não atravessa a tela e preenche, complementa, informa ou corresponde às expectativas de quem assiste. Como a maioria dos televisores atuais tem controle remoto, com um dedinho pressionado, muda-se rapidamente de canal.

Em termos de Ariano Suassuna na televisão, "O Auto da Compadecida" e "Uma mulher vestida de Sol" foram duas adaptações elogiadas, o que não exclui, obviamente, "A Pedra do Reino", mas o que faltou foi a medida certa do texto literário no texto visual.

É uma obra autoral de Luiz Fernando Carvalho que, se for readaptada para o cinema, talvez encontre seu espaço ideal de luminescência mágica.

Mas assistamos até o final, que traz desfecho inédito escrito pelo próprio Ariano Suassuna, já que a obra original faz parte de uma trilogia que ainda não foi concluída. Se a intenção foi a de chamar o público para ler o romance, penso que não será fácil. Deixemos que o mestre o faça por si mesmo, ele entende das coisas.

Parabéns, Ariano, por seus 80 arianos.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Carta ao jornal A Tarde - Centro Histórico


E-mail enviado e publicado no jornal A Tarde, de 13 de junho, seção "Espaço do Leitor", sobre a degradação do Centro Histórico.

Abandono do Centro

"É lamentável o que se vê no Centro Histórico, especialmente nas ruas, praças e largos do Pelourinho. A programação cultural gratuita, que outrora animava a população nos espaços abertos do local, como as praças Tereza Batista e Pedro Arcanjo, foi reduzida, dando lugar a eventos fechados, com cobrança exorbitante de ingressos, principalmente em fins-de-semana ou em período de alta estação, quando a cidade recebe turistas dispostos a pagar, até em euro, para assistir aos shows de bandas. Está certa, a jornalista Rita Conrado, em Tempo Presente(11/6/2007), ao denunciar o estado de abandono visível do Centro Histórico."

Marielson Carvalho, professor da Uneb, Salvador - BA

terça-feira, 12 de junho de 2007

Record Nordeste



A Tv Itapoan, a primeira emissora de televisão da Bahia (1960), é também a primeira a ter uma "news room", a maior do Nordeste e a segunda da Record.

Mas antes de falar desta nova fase do Canal 5, quero ativar minhas lembranças desta emissora que, na adolescência, foi meu playground diário, pois estava tanto presente nas gravações de seus programas, quanto assistindo em casa a sua programação.

Na década de 80, depois de chegar da escola, preparava-me para pegar o ônibus Ribeira-Federação (neste tempo, eu morava na Cidade Baixa) e participar dos programas de auditório da Tv Itapoan, especialmente, os musicais. Pelo menos, três vezes por semana, fazia das minhas tardes de folga das atividades escolares em passeio ao auditório da Tv.

Assisti ao vivo, o início da axé-music e do samba-reggae nesses programas, pois eram um dos poucos a abrir as portas para cantores e bandas do novo gênero. Margarete Menezes, Sarajane, Banda Reflexus, Chiclete com Banana (ainda com Missinho), Daniela Mercury (ainda na Companhia Clic), Durval Lélis, Tatau...

Sem contar com as atrações nacionais, como o grupo Dominó, e as internacionais, como Menudo... Este dia foi especial, pois, como não pude assistir ao show na Fonte Nova e no Shopping Itaigara, consegui vê-los de graça, até mais de perto... Só não consegui pegar autógrafo.

É também desta fase, os programas de Mara Maravilha (antes de ser levada para o SBT), "Bozo" (a versão local era bem melhor do que a nacional) e de Tia Arilma, com o "Parquinho" e suas apresentadoras infantis, Patrícia Fofolete e Geysa...

Eu não sei quantas vezes participei de seus concursos de lambadas, quando este ritmo era a sensação do momento, com Beto Barbosa, Kaoma... Ah, meus verdes anos!

Depois foi a vez de "Ao Pé da Fogueira", o maior concurso de quadrilhas juninas do País. Eu participava de uma quadrilha que, todo ano, concorria o primeiro lugar, num período em que as emissoras locais investiam neste tipo de entretenimento televisivo.

A quadrilha que vencia no "Arraiá do Galo (Tv Aratu), "Forró do Sete" (Tv Bandeirantes) e "Ao Pé da Fogueira", estava quase certa de ganhar no "Arraiá da Capitá". E minha quadrilha conseguiu esta façanha.

Acompanho o "Balanço Geral" desde a época de Fernando José (depois eleito prefeito de Salvador) e de Guilherme Santos (depois eleito vereador). Hoje, Raimundo Varela está na bancada. Afora alguns desatinos verbais, faz um bom programa.

O jornalismo da emissora sempre foi uma escola para muitos jornalistas que hoje posam de "globais" de São Lázaro, como José Raimundo, Kátia Guzzo, Casemiro Neto... Seus telejornais sempre foram criativos, embora, houve um tempo, com recursos audiovisuais pouco modernos, em relação às de outras emissoras locais.

Na primeira fase após a aquisição da emissora pela Record, leia-se Igreja Universal do Reino de Deus, a Tv Itapoan perdeu um pouco a variedade de programas musicais e de auditório, inclusive as transmissões das festas populares de Salvador, como Festa de Iemanjá, Carnaval, Lavagem do Bonfim, para um número cada vez maior de horas para os programas evangélicos.

Com a reestruturação em nível nacional, a Record expandiu e atingiu a marca de vice-liderança na audiência do público brasileiro. Na área de jornalismo, a rede começou a investir a partir de São Paulo e Rio de Janeiro, num modelo de programa parecido com o da Globo, inclusive com a contratação de "ex-globais". Tática de guerra que vem dando certo, embora já esteja encontrando um perfil próprio de produção.

A inauguração, na Tv Itapoan, da sala de notícias da Record Nordeste, é uma tentativa de fazer o que a Globo já tinha feito nos anos 70, quando expandiu, além-Jardim Botânico, seus tentáculos de rede, criando a Globo Nordeste em Recife.

É possível que esta estratégia frutifique bem, haja vista, em termos locais, é um abalo na hegemonia da Rede Bahia de Televisão, a maior do Norte e Nordeste, além de ser um bom início para que mais reportagens especiais produzidas aqui sejam assistidas com freqüência nos telejornais da Record.

É mostrar que os jornalistas baianos também sabem fazer televisão nacional. E com sotaque, para não perder a identidade.



quarta-feira, 6 de junho de 2007

NoMinimo ou como não deixar de rir com Tutty Vasques...


A internet é o céu e o inferno, sem passar pelo purgatório, de muitos sítios feitos com engenho e arte, com qualidade e criatividade, com conteúdo crítico e informativo, com responsabilidade e liberdade de expressão...


Esta é a experiência por que está passando o sítio NoMínimo (http://www.nominimo.com.br/). No mesmo mês (junho) em que completa cinco anos no ar, pode não ser mais atualizado e sair do ciberespaço por falta de patrocínio.


É uma pena, porque é um dos melhores canais de informação da rede, com uma plêiade de jornalistas e colaboradores de altíssimo nível intelectual e expressivo.

Tenho meus preferidos, como Villas-Bôas Corrêa, com sua ironia sagaz no trato com os políticos. Admiro-o desde o tempo em que era comentarista, na década de 80, do Jornal da Manchete, aquele telejornal de uma hora de duração e que fazia a diferença ao insuperável Jornal Nacional. (Minha mãe não entendia bem o porquê de eu gostar tanto do telejornal... "É longo demais", dizia ela. Sem contar que impedia de assistir a novela das oito, que hoje é das nove.)


Tem também Tutty Vasques, com suas notinhas satíricas sobre todo mundo, não libera ninguém. É tão viciante lê-las, que assinei para receber todas as vezes que ele atualiza no sítio. E todo dia tem um gracejo. Cheguei até colaborar com ele, ao informar que Fernandinho Beira Mar, quando fez sua temporada prisional em Florianopólis, ficou na superintendência regional da Polícia Federal, localizada na Avenida, creia, Beira-Mar... Não é preciso dizer o quanto ele se sentiu em casa, né? Hehehehehe.


E por último, Sérgio Rodrigues, com suas colunas "A palavra é..." e "Todoprosa". A primeira, tem conteúdo que nem mesmo os lingüístas mais caxias na profissão conseguiria dar conta de tamanha presteza como o jornalista, que comenta e analisa neologismos, coloquialismos, estrangeirismos, lulismos etc, surgidos por aí, na mídia. Já usei vários de seus comentários em aulas de língua portuguesa e redação. Seu livro "What língua is esta?" (Ediouro) é divertidíssimo. Já "Todoprosa", trata de livros e autores, com resenhas e comentários igualmente inteligentes sobre literatura dos mais variados estilos, assuntos, gêneros, eventos, sempre com desenvoltura e inteligência.


Por tudo isso (para mim, estes exemplos já são um bom motivo), é que eu convoco aqueles que gostam de um boa leitura e procuram um sítio (ou porto) seguro em meio à turbulência (e mediocridade) da rede, para acessarem diariamente o sítio e fazerem ultrapassar a marca de 5 milhões de páginas visitadas a fim de sensibilizar os patrocinadores para, no mínimo, pagarem o último balão de oxigênio de NoMinimo.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Domínio Público continua na WEB


Ao ler uma nota da coluna de Cacau Menezes, no "Diário Catarinense" de hoje, jornal diário de Florianópolis, tomei um susto, típico daqueles de pular da cadeira. É exagero? Não.

É que na informação dada pelo jornalista, o Portal Domínio Público (veja link ao lado, na seção do blog "Sítios Que Me Situam na WEB") estaria fadado a ir para a lixeira do ciberespaço, ou seja, seria desativado por falta de acesso!

Loucura, pensei, o Governo retirar um portal de obras literárias e outros tipos de textos (audiovisuais e midiáticos) para download gratuito. Seria um retrocesso que remontaria à Idade da Pedra Lascada.

Já estava preparando um manifesto de repúdio, um abaixo-assinado online para impedir tamanha atrocidade contra o acesso à informação e à leitura, num país tão carente disto.

Mandei um e-mail para o jornalista, mas não esperei ele me responder e fui tirar satisfação com os organizadores do Portal. Foram rápidos na resposta, ei-la na íntegra:

Prezado Marielson,

Agradecemos o contato. Graças a seu interesse e participação, o Portal Domínio Público tem alcançado resultados cada vez melhores.
Informamos que é falsa a notícia veiculada na internet e na mídia em geral sobre a possibilidade de desativação deste Portal, por suposto motivo de falta de acesso. Já foi divulgada uma nota desmentindo essa informação, mas as pessoas, infelizmente, continuam não verificando a informação e repassando os e-mails.

Atenciosamente, Lídia Hubert.

http://dominiomec.blogspot.com/

Imediatamente, encaminhei o e-mail para Cacau Menezes, a fim de que ele faça um mea culpa e procure averiguar melhor as notícias que repassa.

Espero a resposta dele, se não vier, faço aqui minha parte como professor de literatura, divulgando para vocês, colegas, alunos e amigos, que não conhecem este projeto do Governo Federal em prol da leitura livre, sem cadastro e conteúdo exclusivo, no ciberespaço.

Acessem, usem e abusem.

domingo, 3 de junho de 2007

Hugo Chávez


A manipulação de informações acerca da decisão do presidente Hugo Chávez de não renovar a concessão da RCTV, a outrora mais influente rede de televisão da Venezuela, pode ser avaliada por todos aqueles que desconfiam do que vem prontinho à sua casa no horário das 20h15, através do Jornal Nacional, ou mesmo de noticiários de outras redes, ou ainda, de editais e matérias dos grandes jornais, como Folha de S. Paulo.


Eu sou um privilegiado, pois tenho acesso a variados canais massivos de informação, mantenho-me atualizado de tudo e, em especial, sobre este caso da Venezuela, tenho buscado me informar constantemente. Assisti ao vídeo "A revolução não será televisionada" (http://www.youtube.com/watch?v=aQu8ic0WRXo), um documentário com imagens exclusivas da tentativa de golpe de Estado ao governo de Hugo Chávez em 2002 por seus oposicionistas, em conluio com a CIA, leia-se Estados Unidos. O vídeo está dividido em 10 partes, devido ao limite de tempo que o You Tube disponibiliza.


Os produtores do vídeo captaram a tensão antes, durante e depois do golpe e do contra-golpe, mostrando os bastidores e a movimentação dos dois grupos pelo poder. A RCTV e outras redes ocultaram a verdade dos fatos, não transmitindo o contra-ataque dos chavistas pela retomada do Palácio Miraflores, em Caracas.


A maioria da população assistia a filmes e desenhos animados, enquanto tiros e bombas explodiam nas ruas, matando os manifestantes que, não acreditando nas informações divulgadas pelo governo provisório de que Hugo Chávez havia renunciado, buscavam o seu presidente, a esta altura escondido pelos golpistas, depois de retirado do palácio.


A não-renovação do sinal da RCTV não foi um ato peremptório de Hugo Chávez. Lá, a concessão é dada por 20 anos e o da RCTV estava vencendo. A Constituição não foi desrespeitada. O presidente esperou até o último segundo de transmissão da TV para não lhe dar a renovação. Foi légitimo. Desrespeito seria se Chávez fizesse isso, enquanto a licença estivesse vigorando.


Outras ainda, inclusive as que colaboraram com o golpe, estão funcionando e fazendo igualmente oposição ao governo que, ao contrário do que divulgam na imprensa brasileira, não faz censura institucional. Talvez quando precisarem renovar suas licenças, se Chávez ainda estiver no poder, não as terão.


O mais interessante neste quiproquó todo é o fato de o Congresso Nacional brasileiro, cheio de questões mais importante para resolver, ter feito um pedido ao governo venezuelano de revogação de sua decisão.

Que moral tem o Senado, com suas raposas velhas mais do que carcomidas de poder, como José Sarney e ACM que, durante o mandato do primeiro como presidente e do segundo como ministro das Comunicações, distribuíram concessões de rádio e televisão para políticos?


O mesmo pode acontecer no Brasil, com a Globo, SBT, Record, Band saindo do ar e só ouvirmos o chiado ou vermos a tela azul de "sem sinal"... É só Lula acordar com o companheiro Chávez na cabeça (ou literalmente com a boina vermelha dos bolivarianos) para os Marinhos, Abravanéis, Macedos, Saads sentirem o travo amargo que a RCTV está sentindo.


Não digo nada.




Caymmi e Eu


Impossível não se emocionar com a presença plácida e melodiosa de Caymmi. Há sete anos pesquisando sua obra, que resultou em dissertação de mestrado em 2004, nunca tive a oportunidade de estar a seu lado pessoalmente. Por diversas vezes, tentei um encontro no Rio ou em Pequeri, em Minas Gerais, mas nunca acertamos os horários. Só por telefone podíamos conversar... Horas que, aos poucos, foram diminuindo para minutos, até chegar a segundos. Ultimamente seu fôlego estava curto e sua voz sumindo. Minha interlocutora passou a ser Stela Caymmi, sua neta, também pesquisadora, que me dizia as novidades do Vovô.

Para mim, a vinda de Caymmi a Salvador depois de onze anos, era uma forma de me encontrar e entregar-lhe meu trabalho de pós-graduação e, especialmente, pedir-lhe a benção, como faço com minha avó Tarcila, de idade quase igual a dele. E, quando o vi chegar ao Teatro Castro Alves, para a entrega do Prêmio Jorge Amado pelo conjunto de sua obra, eu não me contive de emoção, pois estava diante de uma lenda viva da música popular brasileira, um dos remanescentes da geração de ouro do rádio nacional, companheiro de outros tantos bambas e rainhas da música, como Assis Valente, Ary Barroso, Pixinguinha, Dalva de Oliveira e Carmen Miranda. Mais: estava frente a frente daquele que me acompanhou, mesmo que simbolicamente com suas gravações, nas noites de completa solidão em João Pessoa e em Florianópolis, quando escrevia minha dissertação.

Alguns dizem que este prêmio representa as pazes entre ACM e ele, já que, como se sabe, durante muito tempo, fagulhas de discórdia chisparam da relação entre os dois. Quem conhece Caymmi tem certeza de que ele é de paz, não é vaidoso, nem bajulador, daí que esse mau humor foi criado por ACM porque ele não admitia que Caymmi não beijasse a sua mão ou não batesse à porta do palácio para pedir-lhe algum favor, como se isso fosse uma obrigação dos artistas baianos. Não. Caymmi recebe esse prêmio porque ele merece e antes de qualquer político alardear que a Bahia não seria o que é por conta dele, em termos de representatividade cultural para o País, o compositor, que Jorge Amado chamava de “o cantor das graças da Bahia”, há anos já vinha contribuindo para isso sem atravessar nem maltratar ninguém.

Aliás, muito do que foi capitalizado politicamente, nas três últimas décadas, nesta área das artes e da cultura baianas, deve-se mais a seus artistas, escritores e intelectuais, do que propriamente a governantes. O fato de Caymmi não morar na Bahia, não lhe tira a naturalidade baiana, não lhe apaga as memórias da infância e da adolescência tampouco suas afetividades e interações pessoais e coletivas.

Ninguém ousa lhe tirar o que já é próprio de sua experiência cultural e subjetiva, porque, em sã consciência, todo o mundo sabe que é impossível. Talvez seja mais prazeroso, para ele, vir matar a saudade quando pode, do que estar aqui. A volta do filho pródigo à casa dos pais tem um sabor de recomeço, que não é o mesmo da permanência, pois se fosse desta forma, o olhar ficaria acostumado e não veria o diferente, o novo. Ele mesmo disse no documentário feito pela TVE, “Mestre Caymmi da Bahia”, que gostaria de estar agora com 18 anos, para, com o olhar daquela sua idade, ver a Bahia (leia-se Salvador) de agora. Percebam o movimento de ir e vir - de passado-presente-futuro fundidos, mas intrinsecamente separados devido a elementos simbólicos próprios de cada tempo seu - que Caymmi imagina para estar sempre presente na Bahia. É uma concepção de existência de quem só atravessou quase um século de vida tem a autoridade de criar.

O agradecimento silencioso de Caymmi aos aplausos recebidos durante a cerimônia no TCA foi uma das partes mais emocionantes. Sem poder ficar em pé, nem usar sua voz potente, Caymmi usou apenas os olhos para agradecer. Eu, que estava pertinho do palco, tirando as fotos, vi seus olhos cheios de lágrimas. Os meus também estavam.
A benção, Caymmi.

Música é Perfume


Que fragrância tem a voz de Bethânia? Como num efeito sinestésico, de combinação mesmo de sensações diferentes, conseguimos aspirar de seu canto um aroma de buquês... De flores ou de vinhos, não importa, mas, sem dúvida, raro e especial.

No documentário “Maria Bethânia: música é perfume”, entendemos o porquê dessa voz nos envolver tanto... Ouvi-la pela primeira vez é como sentir o cheiro de um perfume. É marcante, impactante, definitivo.

É etéreo, mas palpável, porque suas palavras nos chegam aos ouvidos encorpadas, sólidas... Tudo nos leva a sentir que elas penetram e vibram com uma força inexcedível a nossa memória afetiva. Letra e voz se amoldam perfeitamente.

O que sinto, por exemplo, ao ouvi-la cantar “Bom Dia, Tristeza”, de Vinícius de Moraes e Adoniran Barbosa, é inexplicável, que nem mesmo a letra da canção consegue dar a pista dessa reação tão misteriosa. E não é tristeza, diria, é uma melancolia que não me põe às lágrimas de pesar, mas uma melancolia que remete a uma nostalgia resultado de um momento feliz...

Quando Bethânia canta esta música no filme, ou melhor, quando a cena mostra ela ouvindo a si mesma, com os olhos fechados e acompanhando baixinho, baixinho, em estado de profunda introspecção, me pergunto: “Será que ela mesma está inebriada com o próprio perfume de sua voz?”.

O documentário traz depoimentos do amigo Chico Buarque, do mano Caetano Veloso e da mama Dona Canô. O diretor acompanhou o show “Brasileirinho” e, posteriormente, a produção do cd “Que falta você me faz” e do dvd “Tempo Tempo Tempo Tempo”, inserindo cenas de bastidores e do processo criativo de Bethânia, que de princípio reagiu meio à contragosto ao projeto, porque não se considerava compositora, mas intérprete, por isso não tinha uma obra que fosse interessante o suficiente para se fazer um documentário.

Modéstia à parte, o fato é que o filme comprova o contrário. Bethânia tem, sim, uma obra a partir da ressignificação da criação de outros. Através de sua performance vocal e gestual, a cantora traduz o que Vinícius, Caetano, Chico, Gonzaguinha, Gil e outros tantos compositores criaram. E isso é confessado por ela mesma, quando fala que alguns versos e palavras de canções de Chico foram mudados porque não se amoldavam à sua dicção. Tudo acertado amigavelmente.

George Gachot, franco-suíco, mesmo não sabendo português, confessou ter sido fisgado pela voz de Bethânia, quando a ouviu pela primeira vez em um show na Suíça (Montreaux), e encantado decidiu registrá-la em película, esta tão fina e sensível quanto à dos nossos tímpanos. Algumas cenas foram cortadas porque Bethânia não quis que o diretor mostrasse (quase nada atendida) intimidades suas registradas, como a da comemoração no camarim entre ela, Nana e Miúcha após a gravação da participação das duas no dvd “Brasileirinho”.

Dividi este momento feliz, o de assistir ao filme, com minha amiga Telma, também colega de trabalho. Ela não viu que eu chorava na cena final, quando Bethânia cantava “Melodia Sentimental”, de Heitor Villa Lobos e Dora Vasconcellos, talvez, como eu, estava tão profundamente atenta, tocada e iluminada pela sua voz que, “clara e serena”, vibrava naquele escurinho de cinema. E eu chorava enquanto subiam os créditos...

O título, a propósito, deve ter sido tirado da própria Bethânia, quando em uma declaração sua revela que cantar, que a música é como um perfume... Somente ela mesma para saber o olor (e o valor) de sua voz. Tanto éterea, como eterna, enquanto penetrar e ressoar dentro em mim, dentro em nós...

Carmen


Estou lendo “Carmem”, de Ruy Castro. Uma das biografias mais bem escritas do gênero. Do biógrafo, falo que duas outras obras suas são igualmente maravilhosas. “O anjo pornográfico”, sobre o genial e provocador Nelson Rodrigues, com suas peças e crônicas de humor cáustico, e “Chega de saudade”, sobre a turminha do banquinho e violão, da Bossa Nova e outras bossas.

Dizem que ele ficcionaliza muito, que foge de uma linha mais jornalística para uma narrativa romantizada do biografado, mas como leitor voraz de biografia, penso que ele consegue ser interessante por conta disso mesmo. A leitura corre inteira, sem rodeios nem floreios verbais, porque a linguagem é, antes de tudo, acessível e precisa na narração dos fatos. Não confundir curriculum vitae com biografia. O primeiro, é uma descrição fechada, direta, objetiva e padronizada. Biografia, não. É uma narração. O próprio autor assume que esta é a sua leitura de Carmen, portanto, “uma biografia” e não “a biografia”. Seria presunçoso, Ruy querer ser o último a escrever sobre ela, até porque é impossível enfeixar toda trajetória artística e pessoal de Carmen, mesmo o calhamaço de quase 600 páginas em que ficou o livro. Embora ele tenha escarafunchado tudo acerca da cantora, vazios, dúvidas, intervalos, lacunas, enfim, não-ditos não puderam ser esclarecidos. Talvez fique para uma outra biografia.

Alguém imagina a vida de Carmen Miranda, a “brasileira mais famosa do século XIX”, sem nenhuma historinha que rendesse um fuxico, um babado? A começar pelo fato de ela não ter que revelar sua nacionalidade portuguesa para não atrapalhar a venda de seus primeiros discos, com a antológica marchinha “Taí”, aquela do “eu fiz tudo pra você gostar de mim”.

Sobre isso, inclusive, eu tenho uma opinião, que foi pensada à medida que escrevia a minha dissertação "Acontece que eu sou baiano: memória e identidade cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi". Como é sabido, foi a partir de “O que é que a baiana tem?”, de Caymmi, que Carmen se transformou em ícone de uma nacionalidade brasileira inventada e, por conseguinte, de toda a América Latina, num contexto político e cultural do século passado bem específico no Brasil (a instauração do Estado Novo, a consolidação do samba urbano e a popularização do rádio) e nos Estados Unidos (a criação da “Política da Boa Vizinhança”, a industrialização da economia e a produção de filmes de Hollywood). Tudo isso junto, contando ainda com o principal, o talento, mudou a vida e a carreira de Caymmi e Carmen.

A situação de Carmen Miranda era tão delicada em relação à sua nacionalidade que durante toda a sua vida ela não conseguiu naturalizar-se brasileira, embora estivesse bastante integrada ao meio social, artístico e cultural do Rio de Janeiro e, posteriormente, fosse vista no estrangeiro como representante da nacionalidade “verde e amarela”.

Quando voltou de sua primeira viagem aos Estados Unidos em 1940, a cantora se apresentou no Cassino da Urca, mas não agradou a todos. No dia seguinte, os jornais estampavam em suas capas que ela tinha voltado americanizada. Falavam que, como não bastasse ser portuguesa, ela ainda mudou o ritmo do samba para o gosto dos americanos. Argumentavam os críticos mais reticentes que o samba não admitia misturas, tinha de ser puro como os brasileiros estavam acostumados a ouvir, como o que ela mesma cantava antes de virar “Brazilian Bombshell”.

Penso que ao assumir a baiana de Caymmi como imagem de seu novo trabalho, ela não só ascendeu profissionalmente, mas também se tornou simbolicamente em brasileira através de uma tradição cultural que era considerada original e “fonte de legitimação” de uma identidade nacional. Era como se a Bahia desse à artista um passaporte brasileiro que ela nunca teve de fato. A brasilidade idealizada nesse período tinha uma autenticidade que passava pelo samba baiano e pela mulher baiana.

Ainda estou na parte em que ela ainda não se descobriu baiana, ou seja, antes de 1939, quando Caymmi, já instalado na Capital Federal lhe apresenta aquele sambinha cheio de dengo e graça, de balangandãs e pano-da-Costa. Inclusive, a capa da biografia é feita com uma foto de Carmen no melhor estilo turbante, barriguinha de fora, brincos e pulseiras de bolotas e aqueles gestuais e olhares melífluos. Ou existe uma outra imagem que a marcou tanto em nossa memória?

Passagem para Índia







"Passagem para a Índia", filme de David Lean, mesmo diretor de “Lawrence da Arábia”, foi o primeiro filme a que assisti no cinema com minha mãe. Lembro-me que foi no extinto Cine Tamoio, perto da praça Castro Alves e da rua Chile, centro antigo de Salvador. Ainda não sei o porquê de ela ter me levado para assistir, nem ela hoje consegue me responder com precisão.


De qualquer maneira, o filme ficou registrado em minha memória. Deveria ter uns doze anos e, confesso, não entendi muito bem o enredo, mas as cenas exuberantes de um país estranho e exótico me levaram, quatro ou cinco vezes depois, a assistir de novo em vídeo-tape e, nesta última semana, em laser.

O filme é uma adaptação do romance homônimo “Uma passagem para Índia” (A passage to India), de E. M. Forster, escritor inglês do século XIX, autor de mais algumas obras adaptadas para o cinema, como “Maurice” (Maurice) e “Retorno a Howards End” (Howards End). Como crítico literário, escreveu também “Aspectos do romance”, obra sempre referenciada nas disciplinas de teoria literária dos cursos de Letras.

Fiquei estimulado a assisti-lo mais uma vez, quando vi na livraria a nova edição do romance pela editora Globo. Comentei com minha mãe sobre a novidade e deixei entrever na fala o desejo de que gostaria de ganhá-lo no meu aniversário. E ganhei, embora tivesse que trocar, pois comprou um outro livro com título parecido: “Passagem pela Índia”.

O interessante desta nova edição é o prefácio esclarecedor e acertado feito por Sônia Guardini T. Vasconcelos. Com o nome de “O império sobre areia”, a autora abre o caminho para o leitor refletir acerca da narrativa pela qual vai atravessar. São 369 páginas, incluindo um pequeno glossário de palavras anglo-indianas usadas pelo escritor.

A obra deixa aflorar uma crítica ao imperialismo britânico na Índia, mostrando, por conseguinte, as diferenças culturais e identitárias entre uma Índia multiétnica e um Império que não consegue dar conta desta diversidade. Esta dificuldade de entender a Índia, embora Forster seja simpático ao país, é marcante na própria construção ficcional da obra.

Pessoas, lugares, costumes, tudo parece ser incompreensível tanto para o autor, quanto para os personagens estrangeiros residentes e visitantes no país. E este choque cultural, eivado de racismo e preconceitos, é o que dá a tônica das relações entre indianos e britânicos, representados pelos personagens principais Dr. Aziz e Srta. Adela.

Antes desta última vez, assisti em 2004, em João Pessoa, ao filme com Kelvo, meu colega de mestrado em Literatura e Cultura. Estávamos lendo e discutindo nas disciplinas o texto de Edward Said, “Orientalismo”, que trata mesmo desta “fascinação” e “invenção” do Oriente pelo Ocidente, em especial, a partir do contexto anglófono e de seus escritores, intelectuais, cientistas e governantes.

O filme nos ajudou a refletir os argumentos que sorvíamos com prazer do livro de Said, mesmo sabendo que esse estudo só se completaria com a leitura minuciosa da obra de Forster, citado algumas vezes pelo crítico como um dos inventores deste espaço simbólico demarcado como antípoda, como o inverso de um mundo moderno e civilizado.

Literatura e cinema de altíssimo nível de qualidade criativa e estética. Vale a pena ler e assistir. Ou vice-versa.