quarta-feira, 30 de abril de 2014

Rosas de Abril para Caymmi


Dorival Caymmi, senhor do tempo ideal da criação


Ao homenagearmos o centenário de Dorival Caymmi no dia 30 de abril, estamos não só celebrando a trajetória pessoal e artística de um dos maiores compositores da Música Popular Brasileira nos séculos XX e XXI, como também reconhecendo seu cancioneiro como uma das expressões mais singulares de nossa memória cultural soteropolitana.

A baianidade caymmiana é a tradução de uma identidade cultural a partir de sua própria experiência, ou seja, de suas interações e trânsitos identitários e sociais em diferentes contextos, não apenas baiano, o que o desvincula da ideia de uma baianidade institucionalizada e ideologicamente formatada por políticas de governo na área de cultura e turismo.

É claro que sua criação não está dissociada da identificação que ele teve desse lugar simbólico e material chamado “Bahia de São Salvador, (...) pedaço de terra que é meu”. Foi a partir dele mesmo que Caymmi selecionou referenciais com base em critérios particulares, independentemente de filiação ou descendência direta a uma identidade preconcebida ou naturalizada.

Nada falta ou exagera nas suas canções praieiras ou sambas. Tudo está na medida exata de seu tempo afetivo e criativo. Está tudo ali articulado e integrado. E quando cai na boca do povo elas soam como se estivessem desde sempre feitas, nascidas sem precisar de adereços, arremates e afins. Daí que ele mesmo dizia que era preguiçoso sim, porque a sua produção não passava de 100 canções, mas todas obras-primas. Não dava impressão de que existia bagulho no meio.
         
Até sua morte em 16 de agosto de 2008 aos 94 anos de idade, a conta já tinha passado de 100 e fechou em 120 composições. Até não surgir de sua maletinha de couro ou de sua coleção de agendas um rascunho, um verso ou mesmo uma canção inteira, Caymmi era um dos poucos compositores vivos, aos 70 anos de carreira, com menor número de canções... A delicadeza e o perfeccionismo caymmianos na hora de compor resultaram um cancioneiro cujas forma e conteúdo são inigualáveis e insubstituíveis.
       
A naturalidade com que compunha e interpretava suas canções não deve ser confundida com improviso. O rigor estético de Caymmi é comparável a de um artífice ou ourives, e mesmo aqueles de ouvidos mais atentos não conseguiram pegar o seu jeito de tocar violão, mas o reverenciavam como mestre. João Gilberto que o diga.

Caetano Veloso, em depoimento no CD Caymmi Inédito (1994), fala que João Gilberto o alertava para que visse em Caymmi, e não nele, o começo de tudo. Gilberto Gil em seu recente álbum faz uma homenagem aos dois na canção “Gilbertos”: “Foi Dorival Caymmi quem nos deu/ A noção da canção como um liceu/ A cada cem anos um verdadeiro mestre aparece entre nós/ E entre nós alguns que o seguirão ampliando-lhe a voz e o violão”.

Depois de 32 anos morando no Rio de Janeiro, desde quando embarcou no Ita aos 23 anos, Caymmi retorna para Salvador na década de 1970 e, como os pescadores de Itapuã, traz “o peixe bom” (suas canções) para ali, na casa de Pedra da Sereia, no Rio Vermelho, continuar sua produção. É neste momento que Caymmi se envolve mais com o candomblé e grava o LP Caymmi (1972), o último trabalho com maior número de canções ainda não gravadas por ele ou de canções inéditas, como “Oração de Mãe Menininha”, além do último álbum em cuja capa tinha a reprodução de uma pintura sua, neste caso uma sereia morena de longos cabelos verdes e atrás dela vários oxês (machado de Xangô, seu orixá e do qual era Obá no Ilê Axé Opô Afonjá).

Mas como ainda estava no auge da carreira e tinha muitos compromissos profissionais no Rio de Janeiro, além de toda sua família morando lá, Caymmi voltou, mas continuou saudoso de sua terra. Suas passagens por Salvador incluíam roteiros sentimentais por lugares que marcaram profundamente sua memória e identidade, e que foram poetizados em sua dicção musical.

Nada justifica certa má vontade ou indelicadeza de alguns baianos ao criticarem as escolhas pessoais de Caymmi ou mesmo o considerarem “inventor” de alguns mitos negativos do baiano. Qualquer um, até quem não é baiano, pode ter sua imagem de Bahia. Caymmi é original, porque sua mitologia baiana é a própria idealização de seu estar e ser neste mundo praieiro de sereias, espumas e sargaços, ou de  rodas-de-samba, afoxés e festas de rua, ou ainda de azeite de dendê, balangandãs e orixás.

Em sua última passagem pela Bahia, em 2006, quando recebeu o Prêmio Jorge Amado de Cultura e Arte pelo conjunto de sua obra, Caymmi mesmo sem poder andar, e ainda com visão e audição comprometidas, fez três pedidos que muito simbolizavam para ele toda sua baianidade: ir à Igreja do Sr. do Bonfim, comer acarajé e sentir o cheiro do mar de Itapuã.

Pedidos atendidos, Caymmi morreu realizado. “E assim adormece esse homem/ Que nunca precisa dormir pra sonhar/ Porque não há sonho mais lindo/ Do que sua terra, não há”. Esses versos finais de “João Valentão”, uma das músicas mais lindas de seu cancioneiro, são o epitáfio perfeito para a leveza, a paciência, a genialidade de Dorival Caymmi.