domingo, 2 de setembro de 2007

Cansar: verbo transitivo direto, intransitivo e pronominal...



Ufa! Três regências, três opções de construir uma oração, três maneiras de expressar uma ação de fastio, de enfraquecimento, de escassez ou de esmero.

A palavra, segundo o dicionário Houaiss, entrou na língua portuguesa no século XIII e tem origem na palavra latina "campsáre", da linguagem náutica (rodear, andar à roda, dobrar um cabo, uma ponta no mar).

Nas últimas semanas, esse verbo na primeira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo tem sido o nome fantasia do Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros. Criado com o objetivo de pressionar os representantes do Estado a atitudes que visem à harmonia, à segurança e a paz social, o movimento, capitaneado pela OAB-SP e patrocinado por empresários, já dá sinais de cansaço.

O "Cansei" não esconde, mesmo com toda a maquiagem publicitária que se tem feito, uma intencionalidade anti-Lula, elitista e partidária.

A começar por uma das garotas-propagandas (nem tão garotinha assim) do movimento, Regina Duarte, que declarou no programa de José Serra, que tinha medo de que Lula vencesse as eleições de 2002. A começar por João Dória Jr. , um dos mais entusiastas defensores do elitismo social e econômico do País e que apoiou Geraldo Alkmin. A começar por Paulo Zottolo, presidente da Philips, que fez uma declaração preconceituosa sobre o Piauí ("se o Piauí deixar de existir ninguém vai ficar chateado"), Estado governado pelo PT (coincidência?). A começar... Vamos terminar por aqui.

O ato público organizado pelo movimento em São Paulo, na praça da Sé, me fez lembrar de uma outra manifestação no mesmo local, esta bem mais popular. No chão da praça do histórico comício das "Diretas Já", que reuniu, em 1984, 300 mil pessoas, o "Cansei" conseguiu apenas 5 mil. Pouco para o estardalhaço midiático promovido.

Se a intenção foi lembrar o significado político das "Diretas Já", que de fato mobilizou o espírito cívico dos brasileiros, porque estávamos todos cansados da ditadura, da tortura e da censura, não logrou êxito.

A mobilização do "Cansei" teve mais acolhida em grupos e núcleos da classe média, média-alta, alta, altíssima, que enviaram seus soldados mais aguerridos. A patuléia, se foi convidada, não entendia muito bem a motivação daquele desfile de celebridades no palco, ao contrário, aproveitou que passava para o trabalho ou à procura de trabalho para ver o espetáculo de caras e bocas do show business nacional.

O que quer mais Ivete Sangalo, com sua cobertura no metro quadrado mais caro de Salvador? E Hebe Camargo, com seu salário milionário e participação também milionária de merchadising no SBT? E Ana Maria Braga, com sua lancha nababesca e suas fazendas de criação de gado?

Jesus Sangalo, irmão de Ivete, foi quem deu a idéia de criar o movimento e arregimentou uma tropa de notáveis para levantar a bandeira com ele. O interessante é que ele foi buscar na elite paulista esse apoio, a que mais esperneia por ter que carregar nas costas o Brasil e, especialmente, o Nordeste, a "chaga sócio-econômica" do País.

Esse comportamento é verificável na fala de Patrícia Rollo, socialite, ex-Mansur, dono das extintas Mesbla e Mappin, que mesmo sem o glamour de outrora, não dá o braço a torcer e, sem elegância nenhuma (ela é autora de um livro de boas maneiras), desce o pau do preconceito nos baianos.

Em entrevista à Carta Capital, ela chama de acomodados os baianos que recebem o Bolsa Família, pois estes não procuram mais trabalho, ficam só na dependência do governo. Absurdamente, diz que isso se deve ao clima, ao calor, à falta de cultura (sic).

A frase do cartunista Laerte em Caros Amigos deste mês, ao comentar sobre o "Cansei", se encaixa perfeitamente à socialite: "É uma idiotice de madame". Ela, dentre outras, se cansaram de não fazer nada, ou mesmo, de gastar dinheiro na Daslu, e decidiram fazer um passeio pelo centrão de São Paulo, com escolta de seguranças particulares, vestidas de casaco de pele e sufocando os outros com sua soberba.

Um mês depois do ato cívico na praça da Sé, o movimento implodiu, perdeu o fôlego, cansou mesmo. Embora o site oficial insista em dizer que está numa segunda fase, a de elaboração de propostas concretas para o governo, é certo que ele se dissolva cada vez mais e desapareça no sorvedouro.

As principais figuras da campanha sumiram. Ou quando aparecem, causam mais estragos à própria imagem. Foi o caso de Ivete Sangalo que, na tentativa de salvar a pele de Zottolo em um show em Teresina, disse: "Se meu corpo fosse um mapa, meu coração seria o Piauí". Vaia para ela.

Se eu fosse os piauienses, boicotava Ivete em qualquer aparição dela por lá. Assim como fez a Insinuante, a maior rede de eletrodomésticos do Nordeste, que retirou todos os produtos da marca Philips de suas cinco lojas no Estado (acho que mais com receio da população depredar tudo, do que propriamente dar apoio a ela).

Detalhe: não é a primeira vez que Zottolo bole com o Piauí. Segundo a revista Piauí, quando ele era diretor da Nivea, disse que antes dele a marca era como Teresina, "todo mundo sabe que existe mas ninguém sabe onde fica". Um tolo, esse cara.

Outro detalhe: Ivete Sangalo é patrocinada pela Philips. Como foi antes pela Nivea.

Voltando à etimologia do verbo "cansar", vindo de "campasáre", inicialmente significando rodear, andar à roda...

Nadar, nadar e chegar à praia morto de cansaço, depois de tentativas (frustradas) de dobrar uma ponta de mar, como representação mesma do fim deste movimento, não é de todo impossível de se imaginar.

Por outro lado, não há possibilidade de regência verbal para completar a (in)transitividade do cansaço deles. De quê? Você sabe? Não nos cansemos à procura de resposta.