sábado, 3 de novembro de 2012

Malandro é malandro, mané é mané




A voz do morro tem vários intérpretes. A plêiade é extensa. Mas no imaginário de cada um, existem aqueles mais marcantes por alguma excepcionalidade em sua performance musical. Da Velha Guarda, lá dos idos do "desde que o samba é samba", até os bambas da nova geração, que se misturam a artistas de outros gêneros como funk e o pagode, a Rádio Favela irradia sua criação para a cidade.

Entre o morro e a cidade, ainda há uma barreira social e cultural imensa, mesmo que as pacificações/ocupações tentem fazer o contrário. O Estado não consegue mais reverter o preconceito que ele mesmo criou ao empurrar, para longe das vistas de um ideal de urbanidade, os sem-teto, os sem-asfalto.  

Bezerra da Silva tem lugar destacado, ao lado de Cartola, entre os meus sambistas preferidos. Dois artistas de estilos diferentes na dicção do samba carioca, mas iguais no papel de mediadores entre realidades materiais e simbólicas antagônicas. O último, de lirismo apaixonado e saudosista; o primeiro, de verve debochada e realista.

E é sobre Bezerra da Silva, ou melhor, sobre os compositores de seus vários sucessos que o documentário "Onde a coruja dorme" retrata. Falecido em 2005, Bezerra era um "malandro do samba", pois sabia identificar, pelo piá da coruja onde o melhor do samba se escondia. Ali, de sua toca, com seus olhos e ouvidos sensíveis, a coruja está sempre atenta ao que passa a seu redor, volteando seu pescoço a cada ruído  ou movimento.

A coruja em narrativas mitológicas representa a sabedoria, e não à toa, a coruja pia em suas letras um tipo de filosofia que não precisa de escola ou academia para ser um pensamento verdadeiro sobre a malandragem. 

sábado, 8 de setembro de 2012

Prisão, Tortura e Morte


Trailer oficial de "Marighella"



Esta era a advertência de Carlos Marighella para quem pretendia ser revolucionário durante a ditadura militar. O enfrentamento armado contra o recrudescimento das forças do Estado passaria indubitavelmente por prisão, tortura e morte. E não foram poucos aqueles que, mesmo cientes desse vaticínio, pegaram em armas e mostraram que a luta não admitia covardes, mas homens e mulheres destemidos e determinados a transformar a realidade social dos pobres no campo e na cidade. Uma utopia que descendia de uma tradição de movimentos libertários desde os tempos coloniais com os Inconfidentes, passando pelas revoltas escravas e as guerras de Canudos e Contestado até o período de militância de esquerda nas décadas 60 e 70. Um sonho transgressor que se não fosse colocado em prática, mesmo com a perseguição que o status quo operava, o Brasil seria desgraçadamente um país mais miserável e mais submisso à sanha dos "donos do poder".

Marighella enfrentou dois dos mais repressores regimes de exceção no Brasil, a de Getúlio Vargas e a dos militares pós-Jango, transformando-se no mais perseguido comunista, como também no mais adorado, sagrando-se um mito da guerrilha urbana no Brasil e, por conseguinte, em outros países, através de seu manual de guerrilheiro, onde a luta armada contra a repressão política mobilizava antigos e novos idealistas.

Assistir ao documentário de Isa Grispum Ferraz, sobrinha de Clara Charf, viúva de Marighella, e com quem na infância ela conviveu alguns momentos, é como abrir um álbum de família, cujas imagens a diretora revela para nós, mas a partir de um olhar afetivo que dá a medida de um discurso entre melancólico e exultante da figura do tio. Ele aparece em sua narrativa como um herói de façanhas que ela nem imaginava que de fato seria capaz de fazer, mas que para militantes comunistas ele representava uma realidade concreta de combatividade contra o regime. Só depois de adulta é que soube que aquele mulato alto, ao fazer exercícios com pesos no quintal de sua casa, era uma forma de melhorar os movimentos do corpo devido aos tiros e torturas que recebia nas suas prisões. Essa imagem com certeza só realçou o mito de imbatível no imaginário de Isa.

A montagem do documentário é rica em cortes curtos durante a exibição de fotos e cenas de arquivo de outros filmes, criando a sensação de fluidez intensa entre texto e imagem, sem perda do conteúdo informativo, aliás, isto só  colabora para o público conhecer quem foi Carlos Marighella, baiano, filho de um italiano e uma negra do Recôncavo, ambos, segundo depoimento de Antonio Risério, descendentes diretos de famílias revolucionárias, ou seja, de um lado, do anarquismo europeu, do outro, do anti-escravismo malê. Uma descendência que simbolicamente o formou.

Surpreendeu-me a sua produção poética. Poemas escritos em diferentes fases de sua vida, mas todos articulados por uma dicção de ativismo político e de redenção social. Quem o acompanhou de perto, é voz corrente afirmar que a leitura e a escrita faziam parte de sua formação militante desde quando era estudante secundarista do Ginásio da Bahia, ou Colégio Central, em Salvador, cujo exemplar de ousadia criativa é um poema escrito na prova de Física, como resposta ao assunto desta avaliação. Além de ter recebido nota máxima, ficou exposta por um bom tempo no corredor da escola.

É inclusive, a partir deste poema, que Isa Ferraz costura a biografia de Marighella, como se fosse um epitáfio. Narrado por Lázaro Ramos, com o uso de efeitos visuais que imitam o grafismo da régua e do compasso traçando no papel a fórmula da luz no espelho, a diretora metaforiza a trajetória do parente como uma vida especular, ora com a imagem do tio brincalhão e carinhoso em casa e a do militante destemido  e  enfático em suas convicções ideológicas na rua, ora com a imagem de um duplo Marighella mas, como ele próprio escreve no poema, "Dois triângulos então o espelho faz/ Retângulos os dois, ambos iguais.// Iguais porque um cateto têm comum,/ Dois ângulos iguais formando um".

A música-tema do filme escrita por Racionais MC's, "Mil faces de um homem leal - Marighella" dialoga com essa performance dos vários "combatentes" que o acompanhavam na vida social e clandestina e que foram integrados à sua imagem e semelhança.  

Ressalte-se que antes desta produção, outros documentários sobre Marighella foram feitos, com especial atenção para "Marighella: retrato falado do guerrilheiro" (2000), de Sílvio Tendler, cujo roteiro original estou lendo, editado no livro "Castro Alves, Carlos Marighella, Glauber Rocha, Milton Santos: quatro baianos porretas" (Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Garamond, 2011). Agradeço aqui a Telma Brito, que no  lançamento em Salvador comprou o livro e Silvio Tendler autografou o exemplar com as seguintes palavras: "Marielson, com minha amizade e respeito pela biografia do quinto baiano porreta, Dorival Caymmi".

É verdade, são baianos como esses que não deixam a história do Brasil se transformar num conto da carochinha, para desespero, ontem e hoje, dos censores de plantão.










domingo, 12 de agosto de 2012

Serás Amado, Sempre

A imagem que mais me lembra Jorge Amado: ele e sua máquina de escrever


Feliz de uma nação que reverencia seus escritores. Sim. Estou aqui parodiando a frase célebre de Monteiro Lobato, que cunhou que uma nação se faz com homens e livros. Nesse centenário de nascimento de Jorge Amado, esta frase se aninha perfeitamente à sua vida e obra.

É tão bom ver um escritor ganhar o imaginário nacional através de suas criações, personagens e histórias, que independentemente de quase a sua totalidade ser a representação da Bahia, passa a ser a própria imagem de uma identidade brasileira, com toda a sua complexidade social e cultural, mas não menos encantadora pelo drama que lhe faz diferente.

Jorge Amado, malgrado a ainda intensa restrição de certa intelectualidade à sua obra, é a imagem mesma da consagração popular de um escritor. Em parte motivada pelos meios massivos de comunicação, como a televisão e o cinema, a literatura amadiana tem esta aceitação devido à linguagem próxima à fala das  nossas intimidades públicas, ou seja, das nossas vidas mais acessíveis aos outros, cuja familiaridade se dá em diferentes níveis de convivência.

É por isso que quando lemos suas narrativas, seus personagens pululam das páginas como verdadeiros, ou pelo menos, certos conhecidos, o que nos deixa confortáveis para tomá-los como coadjuvantes na aventura literária que aceitamos entrar, à convite de um Exu-guia, o abre-caminho de nossa imaginação, o próprio escritor.

Ao passar os olhos pela estante de minha biblioteca onde estão seus livros, eu me lembro dos momentos de solidão necessária para a sua leitura em casa, no ônibus, na escola, na praia, no avião, na faculdade, enfim, em todos os lugares onde Jorge Amado me puxou para contar suas histórias.

Hoje, vejo como premonitória aquela fase de intensa leitura de Jorge Amado durante a adolescência e início da fase adulta. Mesmo não conhecendo profundamente a obra de Dorival Caymmi naquela época, sentia-me já um caymmiano ao ouvir nas entrelinhas amadianas a trilha sonora feita em parceira com seu compadre. 

Qual não estava sentindo a paixão por Caymmi bater em mim, quando me inundava de emoção ao ler a história marinha de Guma e Lívia, em "Mar morto", embalada pela canção "É doce morrer no mar"? Ou "Terras do Sem-Fim", a partir da qual Caymmi criou a canção "Retirantes", que virou tema de abertura da novela "Escrava Isaura"? E mais ainda, ao ler "Gabriela" e ouvir Gal Costa cantando "Modinha para Gabriela"? 

Foi Jorge, quem me apresentou Caymmi, e isso tudo se confirmou nesse instante que escrevo ao ver o colorido das lombadas das edições variadas do escritor. Livros comprados em sebo, "roubados" de colegas, presenteados pela minha mãe, trocados por outros já lidos, ganhados das editoras por ser professor, encontrados na rua em caixa destinada ao lixo... Jorge Amado à mão cheia. 

Na galeria de imagens de minha memória e experiência com a literatura, aquelas mais emblemáticas são as fotos de Jorge, sem camisa, concentrado e sentado diante da máquina de escrever, dedilhando-a ou a ler um texto já criado... Em sua maioria tiradas por Zélia Gattai na casa do Rio Vermelho, aquelas fotos me davam uma vontade tamanha de usar a Remington portátil que meu pai me deu aos oito anos para também escrever. Achava aquela imagem de Jorge, despojada e natural, a visualização ideal da criação literária. Algo que eu queria ser quando gente grande. 

Se hoje aquela pretensão se aquietou, ainda assim penso como antes sobre a imagem do escritor. De peito aberto, Jorge continua defendendo o que criou. Sem armaduras, o cavaleiro Jorge só usa uma única arma contra os maledicentes: a palavra. Até hoje lida, e sempre amada.

Salve, Jorge!







terça-feira, 31 de julho de 2012

O Amor é Brega!


Casal gay celebrando seus afetos ao som da música brega



Quem nunca ouviu música romântica na solidão? Quem nunca sofreu de uma cornitude existencial? Quem nunca morreu de ciúmes? 

Quem responder não, está querendo ser o que ninguém pode deixar de ser, pelo menos uma vez na vida: brega. Independentemente de classe social, a dor da desilusão amorosa nos deixa ridículos, para lembrar aquele poema de Fernando Pessoa. 

Viajando pelos grotões do Brasil (e dos sentimentos dos entrevistados, anônimos e famosos), Ana Rieper dirige "Vou rifar meu coração" (assista aqui ao documentário completo) com uma sutileza que encanta a todos. Sem ser invasiva, a ideia do documentário é o de deixar as pessoas falarem pelos cotovelos (já calejados de dor) sobre suas mágoas (e felicidades também) no amor.

A trilha sonora dessa história é a música de compositores e intérpretes de diferentes gerações, desde  Lindomar Castilho, Nelson Ned e Agnaldo Timóteo, passando por Amado Batista, Odair José e Wando, até chegar em Walter de Afogados e Rodrigo Mell. 

Aplaudido e premiado em vários festivais nacionais e estrangeiros, "Vou rifar meu coração" foi a melhor estréia da semana nos cinemas de Salvador. Em cartaz no Circuito Saladearte, que se destaca pela excelente qualidade e variedade de seleção de documentários musicais, uma quase raridade nos circuitões de shoppings, o filme de Ana Rieper é louvado pela pesquisa e pela fotografia.

Quanto à pesquisa, não deve ter sido difícil encontrar quem não tivesse chorado nos cantos por uma traição e tivesse a coragem de abrir sua vida sexual e afetiva como desabafo. Nada pior frente ao que celebridades fazem e falam por aí e que são destaques em revistas ou programas de televisão. 

O difícil na pesquisa talvez tenha sido escolher entre tantas histórias ouvidas aquelas mais encantadoras, engraçadas (para não dizer tragicômicas), humilhantes e infelizes de homens e mulheres, héteros e homossexuais, que foram embalados em suas experiências afetivas por um tipo de música considerada inferior pela simplicidade ou obviedade ou pieguice de suas letras. Embora rejeitadas pela intelectualidade acadêmica e pela elite social, essas composições e seus intérpretes são até hoje, depois de falecidos ou aposentados, uma referência de cultura popular e midiática na indústria fonográfica e no rádio.

Aliás, a música brega tem sido reabilitada como estudo e tema desde a última década com a edição do livro "Eu não sou cachorro não" (Record), de Paulo César Araújo, e mais recentemente o documentário "Waldick: sempre no meu coração", dirigido por Patrícia Pillar, sobre um dos ícones da música brega, Waldick Soriano.

Quanto à fotografia, a câmera deixa entrar a luz natural do lugar onde são gravados os depoimentos ou mesmo as cenas sem fala das pessoas convidadas. A preferência por interiores e noturnos realça a intenção da proximidade. As cenas iniciais e finais perseguem longamente, enquanto passam os créditos, o pôr-do-sol, como que preparando o espectador para entrar na intimidade alheia, na sensibilidade recolhida dos mal de amores.

Em alguns momentos explorando a câmera em movimento, mas na maioria preferindo a cena fixa, a diretora conduz com coerência a narrativa a que se propôs fazer, embora o objetivo inicial em 2003, quando começou a captar as primeiras cenas, não foi totalmente o que vimos na tela. De lá para cá, Ana Rieper mudou o foco do projeto, escolhendo por tratar da recepção dessas músicas pelo público e como isto representa muito em suas vidas.

O único senão é que os créditos dos lugares e dos entrevistados só aparecem no final. Não sabemos quem é quem ou a locação por onde a diretora se enveredou. Isso ajudaria mais um pouco na linha narrativa do documentário que tem uma característica "on the road" do começo ao fim. Outra questão curiosa, que não chega a ser restritiva, é sobre a escolha de explorar o Nordeste nesta jornada musical. Será que o nordestino é mais brega do que o sulista? Há amor brega também no sertanejo de São Paulo, Minas e Goiás, onde inclusive o número de "consumidores" é maior.

A trilha sonora é uma beleza à parte, ou melhor, se não fosse a trilha o que seria do filme, se o objetivo mesmo era contagiar também o espectador (malgrado alguns censores na sala tenham reclamado do coral e do buchicho de meus amigos), afinal, "Princesa", de Amado Batista, embora não faça parte de minha coleção de CDs, ainda assim, faz parte de nosso imaginário musical, devido à reprodução nas rádios populares do Brasil e nos botecos e cabarés na voz de um cover.

"Vou rifar meu coração" é recomendável para aquela sua tia solteirona que coleciona discos de Agnaldo Timóteo, acreditando que ele ainda cantará somente para ela. Ou então, para aquele corneado que ainda tem a esperança de que sua amada vai voltar e para isso já tem na vitrola um LP de Wando cantando: "Eu já tirei a sua roupa/ Nesses pensamentos meus/ Já criei mil fantasias/ De desejo e de prazer/ Eu já toquei a tua pele/ Já senti as tuas mãos/ Já beijei a tua boca/ Já senti teu coração/ Só não tenho teus carinhos/ Só não tenho teu querer."

Todo mundo conhece um ou outro! Eles vão adorar!


segunda-feira, 28 de maio de 2012

Abará da Sorte





 "Todo mundo gosta de abará/ Todo mundo gosta de abará/ Ninguém quer saber o trabalho que dá/ Ninguém quer saber o trabalho que dá". Esses versos são da canção A preta do acarajé, de Dorival Caymmi. 

Eu evoco essa letra, porque hoje eu tive uma experiência baiana singular. Digo, singular, porque nunca vivenciei o momento sublime de uma baiana de acarajé montando seu tabuleiro. Mais: de ajudar a baiana a montar sua guia.

Às segundas ou terças-feiras, costumo comer o abará de uma baiana, cujo ponto fica na Rua do Tabuão, ao lado do Bar do Neuzão, no Pelourinho. O quitute é para mim o melhor abará da Bahia, porque, diferentemente do que se vende na maioria dos tabuleiros, ele é feito com feijão fradinho mesmo, bem ralado e misturado a camarão e azeite de dendê de fina escolha. Tudo cheirando a África, a boca cheia d'água com suas delícias.   

Ao chegar, vi a baiana em pé e de braços cruzados, com seu panelão de abará e outras sacolas ao lado. Perguntei, ainda dentro do carro, se haveria abará. Ela, muito simpática, disse que aguardava alguém trazer o tabuleiro. Ainda me perguntou se o abará seria para "levar" ou para comer no local. Respondi que não teria pressa e que aguardaria ela arrumar a banca.

Depois de 10 minutos de expectativa, um homem trouxe o tabuleiro, e eu, já fora do carro, ajudei a levantar o panelão pesado para colocar sobre um banquinho. Esperava ansioso o momento de comer o abará quentinho, o primeiro do dia, mas o tempo da baiana não era igual o meu. E então respeitei.

Como eu disse que não tinha pressa, ela entendeu e preciosa e lentamente arrumou seu tabuleiro. Toalhas alvas e perfumadas com alfazema, panelas de alumínio brilhando, vasilhames plásticos e talheres limpos, tudo isso compunha um quadro de beleza gastronômica a qual eu não tinha ainda presenciado. Ainda ajudei a tirar o saco plástico que embalava a panela do camarão, que foi aproveitado para forrar a lata de lixo, onde seriam jogadas as embalagens de papel e as palhas do abará.

Outras pessoas chegaram e foram tomando seus postos na fila. A baiana fechou um pouco a cara quando um  homem e uma mulher, conversando animadamente, empatavam seu livre trânsito ao redor do tabuleiro, já nos últimos segundos de preparação para começar a vender. Pensei que diante dessa concentração de gente, afoita como eu para comer o abará, ela me esqueceria. Mas antes que alguém pedisse o seu, ela apontou para mim, soberana de seu ofício, e disse: "Psiu, você é que é o primeiro. Tem dinheiro contado?". Claro que sim. R$8,00 em notas de R$2,00.

Decidi por comer um abará na hora, outro, para "levar". Hum! O primeiro abará vendido do dia. Aquela delícia regada a uma pimenta-da-costa,  feita há pouco tempo, com camarões médios, bem refogados, tinha que ser para alguém faminto, e ao mesmo tempo, realizado, pelas boas ações que fez e pelas boas novas que recebeu.

O abará da sorte, nessa segunda-feira de Omolu, não era para qualquer um! 

Era para mim e para meus irmãos.    

terça-feira, 1 de maio de 2012

Raulzito, o Cara








Foi um prazer assistir com José Raimundo, o Pinguim, ao documentário "Raul Seixas: o início, o fim e meio", de Walter Carvalho, por um motivo muito especial.

Como estou envolvido na co-autoria do livro de Pinguim, um dos mais antigos profissionais da televisão baiana, achei que seria positivo reavivar a sua memória de dois momentos de contato com Raul Seixas.

O primeiro, quando ambos foram colegas de turma do Colégio Maristas, em Salvador, na década de 60, sendo, portanto, contemporâneos de um período de efervescência musical que tinha o rock and roll de Elvis Presley como a sensação da juventude de classe média.

O segundo, quando ambos se reencontraram no final dos anos 70, no Rio de Janeiro, e Raul, numa fase de pop star e com influência na mídia da época indicou Pinguim à Tv Globo para trabalhar na produção da emissora.

Esses dois episódios estão narrados no livro "Minha Vida é Flash" de José Raimundo, que completa em 2012, 35 anos de carreira na televisão como produtor e diretor, com experiência na Tv Itapoan e Tv Aratu.

Além dessa satisfação de assistir ao filme com Pinguim, uma outra diz respeito ao próprio documentário, especialmente sobre Raul Seixas, de quem, embora conhecesse os seus maiores sucessos, não conhecia bem sua trajetória artística e pessoal.

Walter Carvalho apresenta ao espectador, fã ou interessado pela vida e obra de Raulzito, um cine-retrato equilibrado e abrangente. Tentando contar a história numa linha de tempo sequencial, mas sem perder o próprio mote transgressor do título, inspirado em um verso de "Gita", o diretor nos fisga pela curiosidade de conhecer os fios que compõem a filigrana da personagem/personalidade do cantor e compositor baiano.

Com imagens de arquivos pessoais e de televisão, além de depoimentos de amigos, familiares, jornalistas, músicos, ex-esposas e companheiras, o filme não traz muitas revelações, mas reacende algumas polêmicas do convívio entre esses entrevistados e Raul, como foi com um de seus parceiros mais conhecidos, Paulo Coelho.

Aliás, uma das cenas mais emblemáticas desta relação tempestuosa e criativa, é simbolizada por uma mosca que incomodava o escritor durante a entrevista em sua residência em Genebra. Enquanto falava sobre certo clima de disputa e inveja entre os dois, o inseto sobrevoava a sala branca e asséptica, entrando no enquadramento e posando no rosto e braço de Paulo. "Engraçado, em Genebra não tem mosca. É o Raul, mas eu não vou matar". Mas logo após, dá um tapa sorrateiro na mosca. E ela voou, persistente.

Outra polêmica é a parceria, dessa vez no palco, de Raul com Marcelo Nova, de Camisa de Vênus. Quando o cantor estava numa fase quase final de carreira, devido ao agravamento da doença no fígado, Marcelo o convidou para uma turnê da banda como participação especial, mas o retorno de Raul foi um sucesso, dando à banda uma visibilidade e profissionalizando-a.

Familiares e amigos dividem as opiniões sobre as verdadeiras intenções de Marcelo Nova. Ele se defende, justificando que, como fã e discípulo de Raul, era uma retribuição pelo que o cantor representava para sua formação musical. Segundo ele, jamais usaria Raul para ganhar fama.

A trilha sonora é Raul, Raul e Raul, mesmo quando rola um incidental de Elvis Presley é Raul, cover do rocker norte-americano, que vemos. Minha memória mais antiga de Raul é da sua interpretação de "O carimbador maluco" ("Plunct, plact, zuum"), em um especial infantil da Rede Globo em 1983. Aparentemente ingênua, a letra faz uma crítica à ditadura, já que o carimbador era a figura mais emblemática à censura no regime, autorizando ou não a divulgação dos produtos culturais e artísticos. Só recentemente, numa leitura mais refinada, percebi o dedo crítico de Raulzito nessa canção.


O filme tem seguido uma trajetória de  sucesso em todos as salas onde é exibido. E vale a pena mesmo assistir e entender o porquê, sem é claro tomá-lo como uma cinebiografia definitiva de Raul, o quanto este cara foi seminal para o rock nacional, e mais, como sua performance musical ainda contagia as novas gerações de roqueiros ou mesmo de novos ouvintes e sonhadores de uma sociedade alternativa.


domingo, 25 de março de 2012

"Pina", de Wim Wenders, o corpo em evidência




Tinha que ser Wim Wenders. Primeiramente, pelo fato de sua obra ser uma das mais criativas e coerentes que eu já vi ("Paris, Texas; "Asas do Desejo", "O céu de Lisboa", "Buena Vista Social Club"); e em seguida, porque sua criatividade e coerência fílmicas concorreram para que "Pina" se tornasse uma experiência audiovisual singular.

Cinema, música e dança, tudo isso em 3D e som digital, além é claro da genialidade artística de Pina Bausch (que morreu em 2009, antes do início das filmagens) nos dão a certeza de que nossos sentidos precisam passar por uma limpeza das impurezas que nos invadem corpo adentro.

É hora de sentir o corpo, tomar posse dele, pois estão nos roubando toda a sua magnitude sensorial. A própria Pina Bausch falava "dance, dance, do contrário estaremos perdidos".

Dançar é sentir-se pleno dono de seu corpo. E Wenders, através das coreografias de Pina e performatizadas pelos dançarinos de sua companhia, realiza mais do que um filme do ponto de vista técnico e comercial, mas também um mapeamento simbólico dos espaços e lugares que o nosso corpo pode alcançar.

É certo que ele alcança muito mais do que supomos, até o que supunha a própria Pina. Não é à toa que por isso ela deixava que seus dançarinos cascavilhassem o que poderiam dar de mais pessoal e intransferível para o espetáculo.

"Dance, dance...", repetia sempre ela. Os depoimentos deles (cada um em sua língua materna, há inclusive uma brasileira na companhia) sobre a vivência com a coreógrafa são mudos, ou seja, em off sobre a imagem em plano fechado de seus rostos, mas que se materializam pelos seus corpos em movimentos, seja no palco de um teatro, onde quatro dos espetáculos criados por Pina são representados, como o deslumbrante "A Sagração da Primavera", seja numa rua, estação de trem, praça, em performances solo ou em dupla.

A trilha sonora não somente acompanha a imagem, mas integra a performance visual e gestual dos dançarinos. O diretor é sensível a isso em seus filmes. Nada fica over ou aquém da medida que as linguagens possibilitam, e isso pode ser visto no solo de um deles sob a voz de Caetano Veloso, cantando "O leãozinho".

Não há tradução literal para o alemão da canção em português. O dançarino mimetiza de outra forma a letra que nos é tão conhecida. Wenders desautomatiza nossa interpretação de modo tal que passamos a aceitar, pela estética coreográfica inusitada, esse novo significado da música.

"Pina" é a minha estréia a uma leitura mais atenciosa sobre a dança contemporânea. A curiosidade de conhecer Pina Bausch foi realizada, que neste filme não é explorado aquele padrão clássico de uma cinebiografia, cheia de entrevistados e locução. Se ela não estava viva para apresentar sua própria criação, a protagonizou nos corpos de seus dançarinos, extensões mesmos do seu próprio.

Aliás, o nosso corpo já não sai do cinema o mesmo.


terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Rota do Açúcar - Pernambuco - Última Jornada


Engenho Massangana - Vista Geral


Engenho Massangana - Capela de São Mateus


Engenho Massangana - Casa-Grande



Pé na estrada para a última jornada da Rota do Açúcar.

Em janeiro de 2011, programei viajar para Alagoas, Pernambuco e Paraíba, a fim de fazer os engenhos desses três estados, mas refiz o roteiro e só visitei as cidades dos dois primeiros Estados.

As cidades da Paraíba, onde estão localizados os engenhos, ficam numa região mais afastada dos engenhos de Pernambuco, por isso decidi naquela época só visitar João Pessoa para reencontrar amigos.

Só voltaria à Paraíba em 2012 para conhecer os engenhos de Sapé, Areia, Pilar e Alagoa Grande. E assim o fiz, desta vez acompanhado de Márcio, como co-piloto.

Saímos dia 27, com parada em Maceió por uma noite. Na tarde seguinte, seguimos para Recife, onde ficamos por dois dias, mas antes de chegarmos à cidade, passamos pelo Engenho Massangana, onde Joaquim Nabuco morou parte de sua infância.

Foi uma visita não-programada, porque minha intenção era só os engenhos da Paraíba. Ano passado, o Massangana estava na lista, mas como estava fechado para reforma, decidi não explorá-lo no documentário, pois decidi só filmar aqueles que eu visitasse ou que poderia visitar durante a pré-produção.

Para a confecção do roteiro, eu preciso ver o engenho. Em se tratando de um filme "on the road", é possível que outros engenhos não-listados entrem no projeto, decorrentes mesmos de indicações ou sugestões de pessoas dessas comunidades ou de pesquisadores.

Fomos recebidos no Engenho Massangana pelo responsável ao atendimento de visitantes, o muito educado e bem-informado Alexandre Souza, morador da comunidade ao lado do engenho, e próximo ao Porto de Suape, o maior complexo portuário do Estado e do Nordeste, na cidade de Cabo de Santo Agostinho.

O complexo arquitetônico do engenho é composto de casa-grande e capela, como as construções mais antigas da área. Não há vestígios da moita e da senzala, nem do cemitério que Joaquim Nabuco cita em seu livro de memórias "Minha Formação".

Visitamos todos os cômodos da casa-grande, que comparados aos outros visitados em Pernambuco ano passado parece ser menos portentoso, mas que segue um padrão estrutural dessas habitações da Zona da Mata pernambucana norte ou sul.

A riqueza do senhor de engenho e família poderia ser vislumbrada boa parte no interior delas, com suas louças importadas ou móveis de madeiras nobres. No Massangana, somente uma mesa de ferro foi preservada. O restante dos móveis foi de doações de colecionadores ou comprados pela Fundação Joaquim Nabuco, do Governo Federal, para reconstituir a ambiência senhorial.

Cenas do filme "Menino de Engenho" (1965), de Walter Lima Jr., baseado na obra homônima de José Lins do Rego, foram gravadas no Massangana, e a moenda que compunha o cenário do filme "Abril Despedaçado", foi doada por Walter Salles ao museu.

Foram 40 minutos imersos na memória visual de Joaquim Nabuco sobre o engenho, materializada em seus escritos e reproduzidos em painéis e banneres nas partes do engenho ainda possível de identificar, como a capela, o quarto onde dormia, a cozinha.

Joaquim Nabuco foi um dos maiores pensadores sociais e críticos contra a escravidão no Brasil. Palmilhou com sua verve entre o ensaio e a prosa literária um ideal de liberdade que, mesmo depois de ter sido alcançada pelos escravos, ainda assim não correspondeu à seu anseio de ver os negros sem as amarras do preconceito e da exclusão social.

É emblemático o texto "A Escravidão", escrito em 1870, aos 21 anos, quando era estudante de Direito em Recife. Não tão conhecido quanto "O Abolicionismo" e "Minha Formação", talvez porque não foi publicado em vida, este ensaio foi concebido para ter três partes: "O Crime", A História do Crime" e a "Reparação do Crime". Somente as duas primeiras foram concluídas. A terceira nem chegou a ser iniciada.

Mais de um século depois, estamos discutindo algo tão óbvio o que Nabuco almejava com uma antecipação e segurança ideológica ímpar: a reparação pelo crime da escravidão que massacrou africanos e afro-brasileiros, e que ainda paira no cotidiano e no privado de nossas relações sociais atuais.