domingo, 6 de janeiro de 2008

Território Invisível de Salvador - Estádio da Fonte Nova

Projeto original de Diógenes Rebouças para
o estádio. Foto atual: Fonte Nova e Dique do Tororó.


No próximo dia 28 de janeiro, o Estádio Octávio Mangabeira completaria 57 anos de inaugurado. Completaria? Sim, porque o que tudo indica, ele não existe mais. Está lá, velho, mas inutilizado. Aposentou-se, compulsoriamente, pelo Governo do Estado. Está fadado a desaparecer por completo e virar pó. Toneladas de concreto esmigalhado e ferro retorcido.

A arena Fonte Nova foi desprezada por seus principais responsáveis e foi, ela sozinha, como se não existissem culpados, responsabilizada pela maior tragédia em estádios nacionais. A notícia virou manchete em todo canto: sete espectadores, que assistiam ao jogo Bahia e Vila Nova, no dia 25 de novembro de 2007, morreram ao cair pela fenda aberta na arquibancada do anel superior, devido à falta de manutenção e conservação.

Uma obra representativa da arquitetura moderna baiana será implodida pela incapacidade de seus administradores darem um destino mais adequado a ela. Arquitetos e engenheiros contestam a justificativa do governo de que a demolição é a melhor forma de resolver o problema, porque, em outros estádios antigos, na Europa, foram feitas adaptações para olimpíadas e copas mundiais sem que fossem destruídos.

Pode-se dizer que o projeto da Fonte Nova é um dos mais bem feitos em termos paisagísticos e arquitetônicos do Brasil, talvez do mundo. A sua estrutura é de um requinte visual que nenhum outro arquiteto, à época, conseguiu ser tão exitoso.

É que Diógenes Rebouças, criador do estádio, além de fazer o recorte das arquibancadas, aproveitando a depressão natural da Ladeira da Fonte das Pedras, não fechou totalmente a visão dos espectadores para a área externa, de modo que, quem está dentro, pode ver parte do Dique do Tororó e a antiga usina geradora, assim como a fonte luminosa dos orixás, em tempos mais recentes.

Isto é possível, porque o arquiteto fez um portal da altura do anel inferior, com passadiço que liga os lados da abertura e os dois níveis estruturais do estádio: o original, de 1951, e o ampliado, de 1971. Em dia de casa cheia, quem passa à pé ou de carro pelo entorno do Dique vê também os torcedores nas arquibancadas, numa integração, pelo olhar, do homem com a natureza.

Se perdermos este estádio, malgrada a tragédia de que foi palco, perderemos parte da nossa memória cultural soteropolitana pela importância que esta "praça de esportes" tem para a configuração espacial da cidade tanto do ponto vista urbanístico, já que foi a partir da construção do estádio que avenidas, ruas e praças foram planejadas em seu entorno; quanto do lazer e do social, pois é sabido que a Fonte Nova faz parte de um complexo que engloba o Ginásio de Esportes Antonio Balbino, o Balbinho, e as piscinas olímpica e semi-olímpica do Clube Olímpico de Natação, onde muitos atletas baianos começaram suas carreiras.

Confesso que, como morador do Desterro, ao lado do Convento, próximo ao estádio, tenho desejado a transferência de jogos para outro lugar, devido aos constantes engarrafamentos e estacionamentos irregulares em dias de partidas concorridas do Bahia, impossibilitando sair e entrar em casa. Se, em partidas nacionais, o movimento de pessoas é enorme, imaginemos quando for um jogo entre Brasil e Alemanha, por exemplo? Se não houver uma reestruturação nas vias de acesso ao estádio, todo o Centro vai parar. Nem o tão divulgado metrô ajudará, isso se ele de fato existir.

Não sei quantas vezes entrei no estádio, mas me lembro de dois momentos marcantes. O primeiro, foi quando tinha mais ou menos 10 anos. Minha mãe, na época, fazia parte das Testemunhas de Jeová e, como era de praxe, todos os freqüentadores desta igreja se reuniam uma vez por ano no estádio para seu congresso. Fiquei encantado com aquela multidão em volta de um campo verde convidativo, mas que não podíamos pisar. Depois disso, sonhei muitas vezes pisando o gramado, correndo por sua pista de atletismo...

O segundo, foi para assistir a um partida entre Vitória e... Ypiranga, Bahia, não sei bem, mas foi ali que, ao lado de meu pai, comecei a ser torcedor do Leão. Em vez de cânticos evangélicos, ouvia o grito da torcida rubro-negra. Mas, em todo caso, eram uníssonas de fé (em Jeová e no Vitória) as vozes que ecoavam naquelas arquibancadas.

1 SEGUNDO E MEIO

O telefonema de desculpas que você não deu nesta manhã para sua namorada, a noite terminou em desentendimentos. O vizinho que lhe mandou um prato de sarapatel pela empregada e que você ainda não devolveu a gentileza com xinxim de bofe, única comida difícil que sabe fazer. A revisão da prova de um aluno que não conseguiu aprovação, mas que merece passar porque é um estudante humilde e trabalha no horário da aula. O cd de Jussara Silveira comprado há três dias e não ouvido, porque o micro system está na oficina e você ainda não retirou. O jardim do terraço que precisa de cuidados, mas a pá e o ancinho estão emprestados a seu irmão, que não o encontrou em casa no horário marcado quando foi devolvê-los. Os e-mails a serem respondidos, principalmente aos ex-colegas de faculdade que planejam um encontro no próximo Natal, depois de 10 anos de formados. As fotos de sua visita à Ilha dos Frades que você não baixou da máquina, porque o cabo usb foi esquecido na pousada quando teve de sair correndo para não perder a escuna. A promoção de passagens da Gol até 23 horas deste domingo, mas a procura foi tanta que o site travou e você não conseguiu nem pesquisar assentos disponíveis para viajar no Carnaval para Florianópolis. O último capítulo não lido de "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra", de Mia Couto, porque depois do almoço, na cadeira reclinável onde você começou a ler, bateu aquele sono e... Naquele 1 segundo e meio, essas imagens afloraram, como uma torrente de rio em tempo de cheia... Naquele 1 segundo e meio, só deu tempo de prender a respiração, mais pelo susto do que por guardar o último ar de vida nos pulmões, no coração... Naquele 1 segundo e meio, enquanto descia aos infernos da dor, numa trajetória sem volta, viu ainda mãos puxando fios invisíveis que não suportavam mais seu corpo magro, mas pesado pelas leis imponderáveis da Física... Naquele 1 segundo e meio, entre a consciência, semi-consciência e apagão, pôde entender porque as folhas, e não os homens, caem dos galhos quando decididamente têm de cair, mas levemente, aproveitando o que o vento tem a lhes oferecer de destino e pouso tranqüilo... Naquele 1 segundo e meio de queda livre pelo buraco da arquibancada da Fonte Nova, você teve dúvidas se estava mesmo vivo. Sete pessoas, mortas a seu lado, não podem lhe responder.


Fotos: Marielson Carvalho