segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A Bahia Também Dá

 
Carnaval 2014 no Centro Histórico em homenagem a Caymmi e ao Bloco Ilê Ayiê

Em 2014, Dorival Caymmi (1914-2008) completaria 100 anos de vida. O Carnaval de Salvador deste ano celebra os 40 anos dos blocos afro, mas não esquece também de homenagear “o cantor das graças da Bahia”, como bem chamou Jorge Amado na apresentação do “Cancioneiro da Bahia”, de Dorival Caymmi.


Em outros carnavais, como o de 2001, o compositor foi lembrado com o tema “Paz no Carnaval”. Nada mais pacífico do que o próprio Caymmi, conhecido pela sua simpatia e cordialidade, para inspirar os foliões a brincarem sem violência. Infelizmente não pôde comparecer à festa, devido a problemas de saúde, mas mandou um abraço enorme com a proteção do candomblé aos foliões: “Eu me vejo no meio deles, eu vejo minha cara sempre no meio do povo. Eu digo: Olha eu lá!” 

Algumas passagens da biografia de Dorival Caymmi como folião no Carnaval de Salvador remontam aos anos 20 e 30 do século XX e são pouco conhecidas, embora muito marcantes para entendermos a relação do compositor com as manifestações culturais e festivas da cidade, que tanto foram recriadas em sua música.

Antes mesmo de pegar o navio Ita e morar no Rio de Janeiro, em 1938, onde começaria de fato sua carreira profissional com o samba “O que é que a baiana tem?”, interpretado por Carmen Miranda, Dorival Caymmi já era frequentador das rádios baianas, nas quais se apresentava sozinho ou com seu conjunto “Três e Meio”. 

Nesse período, Caymmi era sempre citado em colunas do meio radiofônico local pela originalidade de suas primeiras canções praieiras, fruto de seus veraneios em Itapuã, sendo inclusive “imitado” por outros cantores e compositores de sua geração. 

Ainda amador, mas levando a sério esse diletantismo (tocar violão já não era mais uma brincadeira, inclusive não arriscou que o amigo Dodô instalasse no seu instrumento um amplificador, que experimentado em outros violões viraria pau-elétrico), Caymmi vinha se revelando aos ouvintes dos programas das rádios Clube, Sociedade e Comercial como uma “novidade”, já que as músicas que tocavam eram na maioria artistas de fora da Bahia. As próprias emissoras da cidade não tinham a mesma estrutura das rádios cariocas, com elenco e bandas próprios para atrair a audiência. 

Em 1936, Caymmi inscreveu duas composições suas, “A Bahia Também Dá” e “Lucila”, em um concurso de marchinhas carnavalescas promovido pela Rádio Comercial. Durante o mês de janeiro daquele ano, os ouvintes recortavam uma cédula de votação publicada diariamente no jornal O Imparcial com o nome das músicas concorrentes. Ao final do concurso, deu Caymmi em 1º e 3º lugares, respectivamente com “A Bahia Também Dá” (2.667 votos) e “Lucila” (882). Tomando a população de Salvador de quase 370 mil habitantes nesse ano, com a variante de que uma minoria podia ter aparelho de rádio e outra pequena quantidade lia jornal, a receptividade do público com a votação de suas duas marchinhas foi até considerável. 

A marchinha vencedora “A Bahia Também Dá” parece uma provocação carnavalesca à supremacia desse gênero musical tipicamente carioca, mostrando que não era só no Rio de Janeiro que a batucada era animada. Pena essa composição nunca ter sido gravada por Caymmi pelo fato de ele próprio não ter registrado a melodia, mas salvou a letra que nos dá algumas proximidades simbólicas com o Carnaval soteropolitano de hoje.

Ele convoca nessa marchinha a “macacada” (gíria da época que significa galera ou patota) dos bairros de Jacaré, Liberdade, Curva Grande, Pau Miúdo e Curuzu para se alistar no “cordão” (o mesmo que bloco) para “enfezar” (fazer barulho, contagiar) no Carnaval. Não podiam faltar mulheres nesse bloco, preferencialmente morenas do Japão e do Matutu. A bateria de lata e o violão davam a cadência e o ritmo da batucada. À frente, um negro a batucar e com um estandarte escrito “A Bahia Também Dá”, abria alas pelas ruas da cidade para o cordão passar. 

Quando Caymmi abre seu bloco para que todos de bairros distantes ou pobres participassem do Carnaval, ele conclamava mesmo (“mandei vir gente lá do Curuzu”) toda a periferia para descer e ocupar o Centro de Salvador (Rua Chile), onde o desfile dos clubes de elite branca em carros alegóricos luxuosos tinha mais espaço do que os grupos negros e com menos recursos, recanteados pela Prefeitura à Baixa dos Sapateiros. O Carnaval oficial da pompa ficava no alto; o popular, no baixo.

Nesse período, cordões e batucadas, com fortes referências afro-baianas, começaram apontar na vaga da decadência dos carnavais dos clubes Cruz Vermelha e Fantoches da Euterpe. A quantidade desses grupos musicais crescia tanto, que se transformou na principal agremiação carnavalesca. Segundo Donald Pierson (autor de “Brancos e Pretos na Bahia”) que, coincidentemente em 1936 fazia uma pesquisa sociológica sobre as relações raciais em Salvador, flagrou naquele Carnaval várias batucadas como a descrita da música de Caymmi, com componentes de maioria masculina e negra.

Está certo Antonio Risério, quando em seu livro “Caymmi: uma utopia de lugar” descreve o compositor como “etnógrafo de ouvido”, justamente por ele ter sido atento e curioso a uma cultura baiana marcada por referências musicais negras, das quais o próprio não perdia tempo em vivenciar.

É emblemático, ainda, como “A Bahia Também Dá”, além de afirmar uma diferença tanto no Carnaval soteropolitano quanto em relação ao do Rio de Janeiro, também do ponto vista da formação de grupo não levanta cordas para limitar quem quisesse se integrar. Não existia a mercantilização de fantasias para brincar, embora é claro certa contribuição era (e é) necessária para manter a estrutura dos blocos. E mais, antes mesmo da fundação em 1974, no Curuzu, do bloco afro Ilê Ayiê, Caymmi 38 anos antes já sinalizava que de lá era preciso vir gente para o Carnaval. Isso diz muito, porque Caymmi já apontava para a importância dessa comunidade negra para marcar presença. 

Caymmi, após mais de 30 anos morando no Rio, volta a residir em Salvador na década de 70, momento em que surgem os blocos afros e se renascem os afoxés, como Filhos de Gandhy. Ou seja, ele volta num momento de revigoramento musical baiano a partir das referências negras nele inscritas e fundadas. Ele mesmo nessa década se envolveu mais intensamente com o candomblé e fez um disco chamado “Caymmi” (1972), cujo repertório, por exemplo, “Oração de Mãe Menininha” e, pela primeira vez em desenho seu para a capa de um disco, uma referência nitidamente a seu orixá: o oxê (machado duplo) de Xangô. Gravou ainda em 1975, “Afoxé”, cuja letra já existia antes até da criação do Filhos de Gandhy, em 1949.

Em entrevista ao jornal A Tarde, edição de 7 de janeiro de 1980, Caymmi fez uma retrospectiva dos anos 70 que viveu em Salvador, época dos movimentos políticos e culturais negros, como o “Black Power” e o Rastafaranismo, espraiados pelo Atlântico Negro, que desaguaram na Bahia: “A visão minha é que a gente tem que estar ligado às raízes. (...) Era a hora do Black Power, [mas] a gente continuava dizendo, olhe isto aqui, olhe o samba de roda”.

Comemorar o centenário de Dorival Caymmi no Carnaval  2014 é também celebrar, juntamente com os blocos afro, cada um com sua experiência anti-racista e afirmativa, a história de luta e conquista do povo negro dessa cidade, que ainda tem muito que ser respeitada e reverenciada.



terça-feira, 5 de agosto de 2014

Nordestinidades Caymmianas



Artigo publicado na Revista Nordeste. Link para edição e abaixo texto original


Dorival Caymmi completaria 100 anos no dia 30 de abril de 2014. Ao falecer, em 2008, com 94 anos de idade e 70 de carreira, o compositor deixou registradas 120 composições em seu cancioneiro. Tomando a referência de quase um século de trajetória pessoal e artística, e comparando com outros compositores com menos tempo de idade e de experiência, a ideia é de que Caymmi produziu pouco, o que preconceituosamente reativa sua imagem de preguiçoso e por extensão a do baiano. 

Dorival até admitia que o chamassem de preguiçoso, mas esclarecia que sua preguiça era laboral e contemplativa quando era criar. Dizia que, enquanto muitos compositores de sua época se gabavam que tinham 200 ou 300 músicas na gaveta, ele ao contrário só contava que tinha muito menos do que isso, mas tudo com qualidade, porque quanto mais acumulavam, mais davam impressão de que havia bagulho no meio. 

A obra de Caymmi é resultado de sua experiência simbólica e material, afetiva e festiva, social e cultural com Salvador, onde viveu até os 23 anos e depois por quase uma década nos anos 70, e com o Rio de Janeiro, onde, por mais de 60 anos, construiu sua carreira profissional e a sua família. É certo que a maioria de suas canções está diretamente ligada à sua memória baiana, mas sua mediação como baiano em outros contextos e identidades possibilitou que a sua criatividade musical abarcasse outras referências culturais, transformando a Bahia universal. Mas não só a sua terra, o Nordeste também. 

Embora a Bahia seja no complexo identitário do Nordeste um território específico em termos físicos e humanos, ainda assim faz parte de uma invenção de Brasil a partir de engendrações políticas em vários períodos da história nacional como uma região à margem de um modelo evolutivo e modernizante econômico e social. Quando se fala da Bahia, não a dissociam do Nordeste, até porque a caracterização mais restritiva de seu clima e natureza, a saber, o semi-árido, compõe a maior parte de suas dimensões territoriais. 

Assim como a Bahia, o Nordeste não é somente seca. E Caymmi como seu representante, sem estar filiado a grupos institucionalizados, mas nem por isso alheio ao poder de afirmação que sua música passaria a operar no imaginário nacional, mostrava o quanto que a voz do Nordeste através da música não se calaria diante do preconceito e da exclusão. 

Dorival Caymmi era contemporâneo de Luiz Gonzaga, circulando e se cruzando com ele nos corredores das rádios e nos points artísticos do Rio de Janeiro das décadas de 1940 e 1950, quando a produção radiofônica e fonográfica irradiava para todo o País a diversidade musical de seus artistas. Caymmi com seus sambas baianos e Gonzagão com seus baiões afirmavam a imagem do Nordeste a partir de sua pertença de lugar mais íntimo. Cada um na sua nordestinidade dimensionava suas identidades culturais em dicções e estéticas sonoras diferentes, mas iguais no intento de cantar e traduzir suas experiências nordestinas para um público acostumado a ouvir até então apenas marchinhas cariocas. 

Já de alcançado sucesso, depois de estrear em 1939 com seu samba “O que é que a baiana tem?” e com o qual Carmen Miranda tornou-se internacional, Caymmi em 1941 assina contrato para fazer sua primeira turnê fora do Rio de Janeiro. Assim, passou sete meses viajando pelo Nordeste, estrelando programas de rádio em Fortaleza, Recife e Maceió, além de Salvador. Seria seu primeiro retorno à sua terra natal. 

Em Fortaleza, em 17 de outubro, além de iniciar a temporada na Rádio Clube de Fortaleza, o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), órgão da Presidência da República sob o mandato de Getúlio Vargas, aproveitou a presença de Caymmi para fazer um curta-metragem baseado em sua canção praieira “A jangada voltou só”. O próprio compositor atuou como pescador, que na praia se despede de sua amada antes sair para o mar. A gravação foi feita em Mucuripe mais ou menos um mês depois que quatro pescadores embarcaram na jangada São Pedro para a uma viagem inimaginável do Ceará ao Rio de Janeiro em protesto à falta de amparo social e trabalhista do governo federal a seu ofício, além de denunciar a exploração dessa mão-de-obra no mercado local pelos donos das peixarias. 

Coincidência ou intencionalmente com o propósito de desviar a atenção da ousadia dos jangadeiros ao governo getulista, certo é que a popularidade de Caymmi já era uma referência de Nordeste a partir de sua marca como cantor dos mares nordestinos. Mesmo que o ambiente original a partir do qual essa canção foi inspirada não fosse cearense, mas sim a comunidade de Itapuã, a representação do pescador na luta diária em ambiente hostil, mas paradoxalmente necessário à sua sobrevivência, tinha em Caymmi a personificação artística e simbólica deste imaginário modernista e popular. 

Em Recife, compôs uma de suas canções mais conhecidas, “Dora”. Stella Caymmi, neta e biógrafa do avô, reproduz o que ele revela ter sido a fonte de toda inspiração para a letra: uma mulata que dançava freneticamente ao som do frevo de um bloco chamado Pão da Tarde. Desfilava com a intenção de arrecadar dinheiro para o Carnaval, dali a dois meses. Mas segundo Caymmi a animação da banda e da mulata era tanta que parecia tempo da folia. Letra e música saíram na hora. 

Embora pernambucana, Dora compõe, assim como Marina (do samba-canção homônimo, gênero tipicamente carioca) e Rosa Morena (samba “sacudido” baiano), a galeria de mulheres caymmianas que, independentemente de suas origens, são altivas e cheias de dengo e graça, além de performáticas na dança. Antonio Risério, autor de “Caymmi: uma utopia de lugar”, chama-o de “poeta do bumbum em movimento”. 

Em 2004, num show em Recife da turnê de Nana, Dori e Danilo Caymmi do CD comemorativo aos 90 anos de Dorival, os irmãos inseriram “Dora” no repertório com exclusividade para a apresentação na cidade. Em meio à maioria de sambas baianos e canções praieiras, Nana Caymmi, que depois do pai é a voz que melhor interpreta a mais pernambucana das músicas de seu cancioneiro, ao cantá-la deu uma demonstração emocionada do quanto Dorival Caymmi se rendeu às belezas de Dora e do “Recife dos rios cortados de pontes”. 

O ambiente praieiro de suas memórias soteropolitanas foi irradiado a partir do Rio de Janeiro como representação de um paraíso terreal, onde pescadores, sereias e coqueirais compunham um modo de bem-viver nordestino para além da Bahia, mas a tomando como certa idealização idílica de integração homem-natureza. Com a maior faixa litorânea do país, o que resulta indiscutivelmente vozes marinhas de uma memória popular em folguedos, cantos e manifestações culturais, o Nordeste tem o mar como uma de suas imagens simbólicas mais recorrentes no imaginário nacional. Dorival Caymmi inaugura essa mitologia praieira, confirmado por Luís da Câmara Cascudo, folclorista potiguar, como único do gênero na música brasileira.

Em seu centenário, a obra de Caymmi se reafirma como acolhedora de um tempo, cujo ritmo não era medido pela ansiedade ou celeridade das ações. A maré ditava o vaivém de suas ondas musicais. Tudo para Caymmi tinha seu curso temporal em prol dos sentidos. Cada ponto sensorial tem que ser destacado na sua criação e recepção. Tudo urdido e equilibrado pacientemente para ser contemplado. Gilberto Gil, seu aprendiz, compôs “Buda nagô”, uma das homenagens musicais mais belas para o mestre Caymmi, com os seguintes versos: “Dorival é belo/ Dorival é bom/ Dorival é tudo/ Que estiver no tom”.