domingo, 17 de fevereiro de 2013

Yiri Yiri Bon e Ziriguidum: Trânsitos Musicais no Atlântico Afrobaiano


Filhos de Jorge

Gnonnas Pedro


"Este é o nosso verão". Com essas palavras, Dan Miranda, vocalista da Banda Filhos de Jorge, resume a alegria de ouvir "Ziriguidum" na boca do povo e que, posteriormente, foi escolhida pela maioria das pesquisas como o hit do Carnaval de Salvador deste ano. 

Como o verão acaba, devido mesmo a sua sazonalidade, a música da banda será substituída por outras tantas criações ou recriações ano que vem, mas uma música pode, além de ganhar a preferência instantânea do público, ganhar também a memória pessoal e coletiva, e assim ser lembrada ad infinitum e tocada sempre como presente e atual. 

A efemeridade das músicas de Carnaval é uma verdade difícil de ser aceita no todo, prefiro acreditar em metade dessa certeza, do contrário não estaríamos até hoje cantando as marchinhas carnavalescas dos anos 20 aos 50 do século passado, a maioria delas cariocas, mas nem por isso traduzidas às vibrações etílicas e sexualizadas da folia soteropolitana em bailes populares ou elitizados da época.

Isso sem contar com os sucessos do passado da própria "axé" que embalam os corações e rebolam os corpos quando o repertório de músicas atuais não dá conta dos vários quilômetros a serem ainda pulados atrás do trio. 

Não muito diferente das músicas criadas no verão baiano para estourar no Carnaval, as marchinhas visavam os concursos promovidos pelas rádios, o meio de comunicação mais popular do período. Mas como geralmente acontecia nessas disputas, já falando dos nossos tempos, nem sempre a música que os empresários ou a mídia escolhem (com muito jabaculê na jogada) ganha. A voz do povo tem seu lugar e desarma tudo.

O que me interessa mais nessa história toda é o fato de "Ziriguidum" ser a continuidade ou o desdobramento de um fluxo simbólico musical de longa data que sai da África atravessa o Atlântico até Cuba, faz a rota contrária, chega ao Benin, retorna às Américas e aporta em Salvador. 

Li as primeiras e soltas informações sobre "Ziriguidum" pouco antes do Carnaval. Segundo a colunista Natalia Comte seria um cópia de "Yiri Yiri Bon". Mas também não informava de quem era. Os produtores do grupo revelaram que a música era uma versão de Gileno e Gilmar Gomes para essa letra da década de 50, originalmente do compositor cubano Thorn Silvestre Mendez Lopez.

A gravação a partir da qual os compositores baianos tiveram contato é a do disco El Cochechivo (Ledoux, 1981) de Gnonnas Pedro, cantor beninense, que começou sua carreira solo nos anos 60. A partir dos anos 90 até sua morte, em 2004, tornou-se um dos vocalistas da Banda Africando, grupo musical composto por músicos do oeste da África, onde a música cubana dos anos 50 se popularizou. 

Nesta versão de Gnonnas Pedro, o verso "me gusta mulata que baila" foi traduzida quase literalmente pela dupla baiana como "eu gosto da nega mulata/ eu gosto da nega que samba", mas numa outra versão,  Eliades Ochoa, músico cubano, interpreta "Yiri Yiri Bon" e revela que canta esse "afro" de Beny Moré à sua maneira, que resulta  na substituição de mulata por  "muchachos" no verso "me gusta muchachos la rumba/ me gusta muchachos la conga". 

No entanto, o que na versão de Gnonnas Pedro não aparece, nem de Filhos de Jorge, mas nas de Beny Moré e de Eliades Ochoa não muda, é a referência forte da identidade negra na música cubana, cujos versos a seguir demonstram isso: "bailar al compas do tambor/ tocados por manos/ de negros cubanos/ que hayan jurados tocar su tambor". 

Eis que aparece "Ziriguidum" na Bahia, que independentemente de ser original ou não, dialoga com um repertório cultural transcontinental, pondo em circulação simbologias negras que não imaginávamos existir, mas que pela força da permanência sonora africana em nosso imaginário, articula pelo Atlântico as duas margens dessas tradições musicais, ressignificando seus elementos criativos.

A relação entre a música africana e baiana em diferentes contextos de produção, difusão e recepção é tema de meu projeto de doutorado, intitulado "Atlântico Afrobaiano: textualidades, performances e trânsitos musicais entre África e Bahia", a ser desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA. 

Antes mesmo de começar a pesquisa, para qual já selecionei alguns artistas, vejo-me, a partir de Filhos de Jorge, e de outra revelação baiana, mas numa outra clave, como a black music de Dão, a redimensionar constantemente meu corpus. Isso tudo é válido, porque mostra a potência dessa referência negro-africana para a cultura baiana. E eu falo isso sem essencialismos, sem baionocentrismos.