sábado, 8 de setembro de 2012

Prisão, Tortura e Morte


Trailer oficial de "Marighella"



Esta era a advertência de Carlos Marighella para quem pretendia ser revolucionário durante a ditadura militar. O enfrentamento armado contra o recrudescimento das forças do Estado passaria indubitavelmente por prisão, tortura e morte. E não foram poucos aqueles que, mesmo cientes desse vaticínio, pegaram em armas e mostraram que a luta não admitia covardes, mas homens e mulheres destemidos e determinados a transformar a realidade social dos pobres no campo e na cidade. Uma utopia que descendia de uma tradição de movimentos libertários desde os tempos coloniais com os Inconfidentes, passando pelas revoltas escravas e as guerras de Canudos e Contestado até o período de militância de esquerda nas décadas 60 e 70. Um sonho transgressor que se não fosse colocado em prática, mesmo com a perseguição que o status quo operava, o Brasil seria desgraçadamente um país mais miserável e mais submisso à sanha dos "donos do poder".

Marighella enfrentou dois dos mais repressores regimes de exceção no Brasil, a de Getúlio Vargas e a dos militares pós-Jango, transformando-se no mais perseguido comunista, como também no mais adorado, sagrando-se um mito da guerrilha urbana no Brasil e, por conseguinte, em outros países, através de seu manual de guerrilheiro, onde a luta armada contra a repressão política mobilizava antigos e novos idealistas.

Assistir ao documentário de Isa Grispum Ferraz, sobrinha de Clara Charf, viúva de Marighella, e com quem na infância ela conviveu alguns momentos, é como abrir um álbum de família, cujas imagens a diretora revela para nós, mas a partir de um olhar afetivo que dá a medida de um discurso entre melancólico e exultante da figura do tio. Ele aparece em sua narrativa como um herói de façanhas que ela nem imaginava que de fato seria capaz de fazer, mas que para militantes comunistas ele representava uma realidade concreta de combatividade contra o regime. Só depois de adulta é que soube que aquele mulato alto, ao fazer exercícios com pesos no quintal de sua casa, era uma forma de melhorar os movimentos do corpo devido aos tiros e torturas que recebia nas suas prisões. Essa imagem com certeza só realçou o mito de imbatível no imaginário de Isa.

A montagem do documentário é rica em cortes curtos durante a exibição de fotos e cenas de arquivo de outros filmes, criando a sensação de fluidez intensa entre texto e imagem, sem perda do conteúdo informativo, aliás, isto só  colabora para o público conhecer quem foi Carlos Marighella, baiano, filho de um italiano e uma negra do Recôncavo, ambos, segundo depoimento de Antonio Risério, descendentes diretos de famílias revolucionárias, ou seja, de um lado, do anarquismo europeu, do outro, do anti-escravismo malê. Uma descendência que simbolicamente o formou.

Surpreendeu-me a sua produção poética. Poemas escritos em diferentes fases de sua vida, mas todos articulados por uma dicção de ativismo político e de redenção social. Quem o acompanhou de perto, é voz corrente afirmar que a leitura e a escrita faziam parte de sua formação militante desde quando era estudante secundarista do Ginásio da Bahia, ou Colégio Central, em Salvador, cujo exemplar de ousadia criativa é um poema escrito na prova de Física, como resposta ao assunto desta avaliação. Além de ter recebido nota máxima, ficou exposta por um bom tempo no corredor da escola.

É inclusive, a partir deste poema, que Isa Ferraz costura a biografia de Marighella, como se fosse um epitáfio. Narrado por Lázaro Ramos, com o uso de efeitos visuais que imitam o grafismo da régua e do compasso traçando no papel a fórmula da luz no espelho, a diretora metaforiza a trajetória do parente como uma vida especular, ora com a imagem do tio brincalhão e carinhoso em casa e a do militante destemido  e  enfático em suas convicções ideológicas na rua, ora com a imagem de um duplo Marighella mas, como ele próprio escreve no poema, "Dois triângulos então o espelho faz/ Retângulos os dois, ambos iguais.// Iguais porque um cateto têm comum,/ Dois ângulos iguais formando um".

A música-tema do filme escrita por Racionais MC's, "Mil faces de um homem leal - Marighella" dialoga com essa performance dos vários "combatentes" que o acompanhavam na vida social e clandestina e que foram integrados à sua imagem e semelhança.  

Ressalte-se que antes desta produção, outros documentários sobre Marighella foram feitos, com especial atenção para "Marighella: retrato falado do guerrilheiro" (2000), de Sílvio Tendler, cujo roteiro original estou lendo, editado no livro "Castro Alves, Carlos Marighella, Glauber Rocha, Milton Santos: quatro baianos porretas" (Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Garamond, 2011). Agradeço aqui a Telma Brito, que no  lançamento em Salvador comprou o livro e Silvio Tendler autografou o exemplar com as seguintes palavras: "Marielson, com minha amizade e respeito pela biografia do quinto baiano porreta, Dorival Caymmi".

É verdade, são baianos como esses que não deixam a história do Brasil se transformar num conto da carochinha, para desespero, ontem e hoje, dos censores de plantão.