domingo, 13 de dezembro de 2009

Centro de Música Negra


O projeto de Carlinhos Brown de revitalizar o Mercado do Ouro com a criação do Museu du Ritmo ainda não chegou ao ápice de sua inquietação como produtor midiático. O espaço é uma opção já consolidada de shows na cidade, mas a ideia de transformá-lo em um centro cultural que faça jus ao nome que ele batizou só começou a ganhar fôlego com um evento que, a meu ver, foi o melhor de música de 2009.

O Festival de Músicas Mestiças, ocorrido em novembro, deu o tom do que pode ser a programação do futuro Centro de Música Negra no QG do Brown e, assim, resgatar aquela área do Comércio como espaço de sons e ritmos negro-africanos.

O Mercado do Ouro era nos séculos XVIII e XIX um dos centros de abastecimento mais movimentados de Salvador, pois ali existia o Cais do Ouro, lugar de desembarque de mercadorias dos navios. A concentração de trabalhadores braçais negros era evidente devido à própria lógica do sistema escravista necessitar de seus serviços como carregadores.

Mas nem só de labuta viviam os escravos. Nos interstícios da sociedade repressora, eles se divertiam. A música ecoava pela feira, pelo mercado, pelos becos... e nada podia impedir, embora posturas municipais tivessem tentado, que ela fosse registrada na memória das pessoas que por ali passavam.

A diáspora negro-africana resultou males irreparáveis, mas a resistência escrava usou de suas estratégias para que a África de seus ancestrais não afundasse com os milhares de corpos na travessia atlântica. Aos sobreviventes e resistentes, coube a reinvenção em terra estrangeira de suas tradições. O samba, o jazz, o blues, o hip hop, o soul, o funk, o rhythm'n'blues, a salsa, a rumba, o reggae são patrimônio de todos nós, mas tem algo que não escapará à sua criação: a África negra.

A intervocalidade foi a marca deste Festival. O encontro de vozes até então inédito nos fez ter a certeza de que elas já tinham se cruzado em algum instante pelo Atlântico negro. Tcheka, cantor de ritmos de Cabo Verde, como o funaná e o batuque, com Mariene de Castro e seu samba-de-roda do Recôncavo; Les Tambours de Brazza, grupo instrumental, com Carlinhos Brown e seus timbaus e atabaques; BélO, cantor do Haiti e seu estilo afropop, com Margareth Menezes na mesma pegada sonora; Mounira Mitchala, do Chade, com sua performance vocal e percussiva interagindo com o Olodum e, Tiken Jah Fakoly, reggaeman da Costa do Marfim e Senegal, com o nosso Lazzo Matumbi.

Tudo isso foi encanto para os ouvidos. Com a criação e efetivo funcionamento do Centro de Música Negra a nossa expectativa é de que essa experiência não seja apenas uma eventualidade, mas que seja permanente. Se temos o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA como referência em pesquisa acadêmica e o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, atualmente com exposição sobre o Benin, o projeto de Carlinhos Brown deverá ser o primeiro no Brasil com este formato.

O Governo do Estado criou em 1993, no Parque do Abaeté, a Casa da Música. Seu acervo audiovisual e bibliográfico é pequeno e não houve um acompanhamento sistemático das produções realizadas nos últimos anos. Sua estrutura é defasada em relação aos novos recursos tecnológicos de exposição midiática e museológica, nem conta com uma programação que atraia o público. A música afro-baiana tão rica em compositores, instrumentistas, intérpretes, grupos e produtores merece uma inserção diferente nessa comunidade transatlântica de música negra ancorando em Salvador esse centro cultural. O primeiro passo já foi dado: o Festival de Músicas Mestiças e a abertura do Centro com uma mostra de vídeos sobre cada ritmo e seus artistas mais expressivos. O segundo só depende de patrocinadores e dos governos. Queremos no terceiro visitar o projeto inteiro para deleite e conhecimento de nossa ancestralidade musical.


Margareth Menezes e BélO

Tiken Jah Fakoly e Lazzo Matumbi


Mounira Mitchala e Olodum

terça-feira, 10 de novembro de 2009

"Besouro" não voa, só ensaia


"Besouro", de João Daniel Tikhomiroff, é um filme que atrai seu interesse e trai sua expectativa. Neste último caso, a traição não chega a ser traumática, mas a sensação é de que o filme poderia dar mais saltos do que o próprio protagonista.

Baseado em narrativas orais sobre o capoerista negro Manoel Henrique Pereira, conhecido por Besouro, o primeiro longa-metragem do premiadíssimo diretor publicitário João Daniel segue a linha de produção de filmes, comum no Brasil dos últimos cinco anos, que tem dado certo: menos diálogo, mais ação. E no caso de "Besouro" mais ainda. Primeiro, devido ao elenco ser quase todo de atores amadores ou com pouca experiência de cinema, mesmo com preparação de Fátima Toledo, que tira leite de pedra e dá bons resultados como em "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, outro diretor egresso da Publicidade. Os atores não sustentariam o filme com mais fala e menos movimento de cena. Segundo, por ser uma história de capoeira, não se imaginaria um roteiro sem evoluções de "meia-luas" e "rabos-de-arraia".

A escolha de um mestre-de-capoeira, Ailton Carmo, para representar o "herói negro", foi um tento, por conta de sua elasticidade corporal e compleição física apropriadas para as cenas de ação. A performance gestual de Ailton é ressaltada pela coreografia aérea. O que nele tem de mudez, Irandhir Santos, o Quaderna de "Pedra do Reino" (microssérie da Rede Globo), tem de verbosidade quase histriônica, quando, durante todo o filme, obsessivamente caça Besouro para matar, por estar destruindo a fazenda de seu patrão. Sua participação garante a veia dramática e atuante da fala.

A construção do herói pelo diretor é sincera, sem a grandiloquência dos heróis gregos, mas que coincide com a proteção divina, nesse caso baiano, dos orixás. Ele mesmo é visto como um semi-deus por voar e ser invísivel aos olhos de seus perseguidores. A história tem hiatos de narratividade que compromete um tanto o produto final, mas que se salva em parte por ter sido muito bem acabado com os recursos de efeitos visuais. A trilha sonora integrada por Nação Zumbi, Naná Vasconcelos e Gilberto Gil é mais discursiva do ponto de vista de uma idealização do herói. As letras e os arranjos das músicas são como narrativas vocais do que poderia ter sido a imagem em si do filme.

É neste ponto que está a decepção pela falsa expectativa que o filme nos dá. Ao tempo que encanta nossos olhos e ouvidos, nos frustra porque, mesmo que o roteiro seja criativo na reinvenção das lendas em torno de Besouro, não avança e nem fecha certas cenas que são seminais na dramatização da tomada de consciência do personagem contra a exploração do coronel. Isto fica mais evidente nos personagens "mortais" do que no do "imortal" Besouro.

Pai Alípio (Macalé), Chico Canoa (Leno Sacramento) e Quero Quero (Anderson Santos de Jesus)dão mais veracidade a uma perfomatividade negra combativa do que Besouro, quando reagem sem uso de artifícios à subordinação social vigente no engenho de açúcar.

Sua morte pela faca de ticum, a única forma de quebrar o encanto do corpo fechado, só termina a participação de Besouro no filme. Nem seu filho pequeno, que seria a encarnação do mito do pai, dá continuidade ao ideal de luta em cuja ação Besouro poderia ser mais crível. A solução do diretor foi transformar o menino em futuro vingador da morte do capoeirsta, quando em uma das cenas mais emblemáticas, flagra em slow motion os olhos dele mirando o coronel matador. Vingança por vingança, matar por matar, não resolve o problema da exploração, ela só agudiza a tensão social.

Quem dá a mensagem no final, recuperando assim (ou tentando recuperar) o que o mito de Besouro faz circular nas rodas de capoeira e que no filme ficou comprometido pela falta de ênfase no discurso afirmativo, é o Chico Canoa, que mesmo com as pernas defeituosas, quebradas em uma reação aos capangas da fazenda, ensina o filho de Besouro os primeiros passos da capoeira e, assim, de fato a consagrar a herança simbólica do pai pela ação de uma arma de resistência escrava.

O filme constou da lista dos elegíveis para representar o Brasil na seleção de melhor filme estrageiro no Oscar 2010. O Ministério da Cultura fez bem em não ter escolhido "Besouro", mas meteu os pés pelas mãos ao indicar "Salve Geral", de Sérgio Rezende.

O importante é que o filme tem seguido como um dos favoritos do público, se tomarmos a bilheteria alta em Salvador. Por curiosidade, devido ao apelo publicitário dos efeitos visuais à la "O tigre e o dragão", de Ang Lee, ou mesmo por identificação dos baianos com a capoeira e as referências à cultura da Bahia (as locações são da Chapada Diamantina), "Besouro" vale pela redescoberta do personagem-tema e sua versão fabular. Como herói, precisaria mais um pouco de força para voar mais alto.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O Iraque é aqui!

Gays enforcados no Iraque: homofobia mata

Depois de uma Parada Gay animada no dia 25 outubro, onde e quando todos e todas deram pinta sem o olhar de reprovação dos moralistas de plantão, nem o cacetete da repressão policial, eis que na semana seguinte um crime mancha a bandeira colorida com o sangue da intolerância.

A brutalidade com que foi assassinado Jorge Pedra, jornalista e apresentador de programa na Tv Salvador, é capaz de nos deixar impactados, mas não impassíveis. O Grupo Gay da Bahia bradou e a Prefeitura já autuou três hotéis que na verdade funcionavam como motéis e não registravam os hóspedes.

A lista de homossexuais mortos por homícidio ou latrocínio na Bahia já chega a quase vinte desde o início do ano, muitas vezes sem a prisão dos criminosos e que podem estar à solta, caçando mais um gay para o deleite de sua mente doentia.

Os comentários do público nas ruas e de leitores nas matérias dos jornais locais apontam o jornalista como o culpado pela própria morte. Isso não resolve o caso, mesmo que o assassino seja preso e confesse o crime, porque Jorge não estará vivo para se defender do preconceito e da homofobia. A violência anti-homossexual já é um caso de segurança pública nacional.

Escolher bem seus parceiros sexuais não é garantia de vida. É certo que o garoto de programa já foi para o hotel com a intenção de roubar ou/e matar, mas quantos crimes passionais entre heterossexuais e mesmo entre gays casados de longo relacionamento estampam as páginas policiais?

Por sinal, noticia-se mais casos de mortes entre heteros do que entre homossexuais, pelo fato mesmo de a família e amigos de muitos gays não-assumidos ocultarem a motivação do crime para preservar a honra de todos.

A ousadia de um gay não é a mesma de um hetero. Ela é mais arriscada, porque numa sociedade machista e homofóbica não lhe é dada concessão sem que não haja humilhação e discriminação. Isso antes, durante e depois de ser morto. Tratamento de expurgação sexual e limpeza social.

Neste caso de Jorge Pedra, sendo ele cliente assíduo do hotel onde morreu, a recepção não se preocupou em registrar o nome do homem que o acompanhava. Sendo VIP, merecia segurança e atenção do estabelecimento, mas assim como o michê, o gerente do Democrata só tinha interesse no dinheiro de Jorge. Era certo.

Depois de consumado o crime, os reais que Jorge ganhava para mostrar caras e bocas de gente do high society baiano não valeram os minutos de fama e sucesso, não por acaso nome de seu programa, que ele teve nos Se Liga Bocão e Na Mira da televisão como mais uma "bicha morta". Só a família e poucos amigos compareceram ao enterro. Ricos e famosos sumiram.

Preocupa-me muito a imagem de permissividade sexual em Salvador divulgada entre os gays brasileiros e estrangeiros. Aqui todo mundo gosta do babado e faz sem comedimento. É esta a ideia que se tem dos homossexuais (e heteros) baianos, mas não se atentam para o 1º lugar ocupado pela Bahia em mortes por homofobia. Se há ligação direta entre uma coisa e outra, não é possível afirmar, mas que aqui a caça e o abate de "viado" são recorrentes, não tenho dúvidas.

No Iraque, segundo relatório mais recente do Human Rights, homossexuais são perseguidos e exterminados por extremistas religiosos. Os corpos são jogados no lixo com inscrição de "pervertidos" no peito ou enforcados e expostos em praça pública. Adolf Hitler perseguiu judeus homossexuais, que eram identificados nos campos de concentração com um triângulo rosa na roupa. Estima-se que 50.000 foram presos e 10.000 foram mortos.

Esperar pela prisão do assassino de Jorge Pedra e ouvirmos ele falar que matou porque o jornalista queria que ele fosse passivo, como justificou sua defesa o homicida do irmão do humorista Cláudio Manoel, do Casseta e Planeta, em 2007, é jogar para a vítima mais uma vez a responsabilidade e, assim, fazer crer que a masculinidade é intocável e inatacável. Será que o cara é menos gay se for ativo? Tem gente por aí pensando assim, mas o que o dinheiro não faz, inclusive matar, para que o machão não perca sua hombridade?

O assassino de Jorge Pedra agora é mais caça do que caçador. Seu rastro está sendo seguido. E o bicho será enjaulado. A Polícia tem a obrigação de fazer isso. E nós, heteros, bi, homo, trans, o que faremos para que a intolerância não transforme nossos desejos sexuais em mais uma estatística mortal? Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, como diz Caetano Veloso, mas ninguém é obrigado a pagar pelo sentimento de culpa do outro.

Não à homofobia. Criminalização já.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

EBEL


O mini-curso que ministrei em Seabra no XIII EBEL (Encontro Baiano de Estudantes de Letras) sobre a obra de Dorival Caymmi foi realizado a contento, embora a duração, de apenas quatro horas, tenha sido insuficiente para a abordagem do tema. É sempre recorrente o interesse em discutir o tema da baianidade, mais especificamente quando se trata de Caymmi, consagrado por suas canções que representam uma “idéia de Bahia” no imaginário cultural.

Minha pesquisa sobre o compositor, que faleceu ano passado, será publicada em livro em dezembro e lançada só depois de Carnaval. Como baiano que sou, sei que janeiro e fevereiro são meses de praticar o ócio criativo, aquele tipo de descanso que é necessário na lida de um professor para planejar um novo semestre de trabalho. E quando essa pausa combina com o período de outra pesquisa sobre música afro-baiana em andamento, o prazer é duplicado, porque assim como o vendedor de cerveja que brinca e ganha dinheiro atrás do trio-elétrico, eu estarei fazendo trabalho de campo nas festas populares.

Para a atividade no EBEL, apresentei uma proposta de reflexão sobre as referências simbólicas e materiais afrodescendentes em nove canções do compositor, divididas em três temáticas: personagens (João Valentão, A Preta do Acarajé e O que é que a baiana tem?), religiosidade (Oração de Mãe Menininha, Canto de Obá e Mãe Stella) e festividade (Afoxé, Festa de Rua e Dois de Fevereiro).

A participação dos estudantes no mini-curso foi interativa, embora prejudicada pela intensa programação do evento, que impossibilitou o rendimento melhor das discussões a partir das canções selecionadas. Fico grato pela participação de todos que, mesmo em pouco tempo, dialogaram bem com o propósito do encontro. Àqueles que desejarem mais informações sobre meus projetos, estudos e leituras na linha de Literatura e Cultura Afro-Brasileira, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Estudos Pós-Coloniais Africanos, Música Afro-Baiana e Literatura Baiana, além é claro de Dorival Caymmi, estou sempre a postos.

Agradeço a meu amigo Prof. Gildeci Leite pela recepção. Parabenizo-o pelo entusiasmo com que lida com a literatura no Campus XXIII, estimulando intelectualmente seus alunos com debates e pesquisa sobre a produção literária baiana, especialmente sobre Jorge Amado e Ildásio Tavares, que esteve presente com sua palavra afiada e bem-humorada sobre si mesmo e os outros.

Como orientador de pesquisa, dou nota 10 a meu bolsista Cleber Xavier, que foi elogiado pela comunicação "Edson Gomes: reggae e ativismo negro na Bahia", fruto de nossas discussões sobre música afro-baiana. Aos poucos, nasce um pesquisador de literatura e cultura. Resta apenas perder a timidez, mas até eu fui assim quando comecei. Avante!

A alegria dos jovens estudantes de Letras de diversas universidades da Bahia e de outros estados me deu fôlego para continuar sendo mestre e companheiro deles todos. Quando, na graduação, eu fui para eventos organizados por estudantes, via poucos professores meus da UFBA, só quando eram convidados especiais... Gosto de sentir o frescor da curiosidade intelectual deles ao participar das palestras, dos cursos, das oficinas... Isso me orgulha muito de ser um profissional das Letras.

domingo, 21 de junho de 2009

Sabra e Shatila

Cena que dá título ao filme "Valsa com Bashir"


Depois de "Persépolis", longa de animação de Marjani Satrapi sobre a Revolução Islâmica no Irã em 1979, outra obra do mesmo gênero, lançada ano passado, mas só em cartaz recentemente no Brasil, revolve nossa memória histórica sobre o Oriente Médio, para não nos esquecermos de que tudo, mesmo vinte e sete, trinta anos passados, permanece presente nos conflitos entre Israel e Palestina ou entre iranianos alinhados ou contrários ao presidente Ahmadinejad.

O filme de que falo é "Valsa com Bashir", de Ari Folman, ganhador de diversos prêmios importantes mundo afora e indicado para melhor filme em Cannes e ao Oscar de melhor filme estrangeiro. É certo que isto dá credibilidade à animação, mas se não fosse a ousadia tanto temática quanto visual da produção, não teria feito trajetória tão elogiada.

O massacre de Sabra e Shatila, em Beirute, durante a Guerra do Líbano entre palestinos, libaneses e israelenses, em 1982, é o tema central do roteiro, mas ele só vai ser revelado a nossos olhos e aos olhos do narrador-personagem no final do filme. Até esse instante, o que sabemos é que o personagem, o próprio diretor, busca através da memória de seus ex-colegas de guerra, o que ele esqueceu do conflito.

Tudo começa (ou recomeça), quando um deles procura Ari para contar sobre os sucessivos pesadelos que tem todas as noites, com 26 cães raivosos perseguindo-o. Ambos sugerem que isso tem ligação com a guerra, então confirmado pelo colega que diz ter sido o responsável por matar, em uma vila do Líbano, o mesmo número de animais, que impediam um ataque-surpresa da tropa por despertarem seus moradores. Mas Folman não se lembra de muitos detalhes desse episódio tão marcante para o outro e se surpreende com isso. Passa a usar seu próprio ofício de cineasta para fazer um filme-documentário, espécie de auto-ficção, para curar ao mesmo tempo o esquecimento profundo e o trauma que o provocou.

Aos poucos, entrevistando os veteranos e um correspondente de guerra, além de um psicólogo amigo seu, ele costura as memórias dos outros para compor a sua. Esse exercício, pouco a pouco, vai revelando cenas que, embora ele não tenha participado ao lado dos ex-soldados que contam, assim mesmo dão conta das lacunas e hiatos de sua participação na guerra. Ele nem se reconhece na única foto que tirou naquela época.

O trauma deve ter sido forte para fazê-lo apagar essa cena de sua vida. Mas a revelação não tarda a emergir das águas profundas, pois mesmo que ela tenha se desvanecido, ele estava lá quando ao entrar em Sabra e Shatila testemunhou cerca de 3500 refugiados de guerra assassinados por libaneses cristãos radicais (os maronitas) que, com o propósito de ajudar os israelenses a combater os palestinos da OLP concentrados em Beirute, na verdade queriam vingar a morte de seu líder Bashir Gemayel, até então presidente do Líbano. O título do filme refere-se a cena em que um soldado israelense, atormentado com a possibilidade de ser morto por estar encurralado, sai da trincheira com o fuzil na mão atirando para todos os lados, como estivesse dançando uma valsa, tendo como fundo musical a Cantata 156 de Johann Sebastian Bach e fundo de cena o retrato gigante de Bashir num prédio.

Os israelenses, responsáveis pelos refugiados, alegam não ter percebido o plano genocida dos falangistas cristãos a tempo de impedi-los. O jovem Ari, que assim como outros tantos de sua idade, estava na guerra menos por convicção política e mais por obrigação ou diversão, acordou desse breu, sendo despertado pelo grito lancinante das mulheres vendo seus companheiros, filhos e parentes assassinados e insepultos.

Tão longe, tão perto, essas cenas lembraram-me do que aconteceu em Canudos, quando alguns entre as centenas de homens, mulheres e crianças que se renderam antes da queda do arraial foram degolados pelos próprios militares. Um crime de guerra, mas que não houve punição. Aqueles que morreram, resistindo até o fim, não foram enterrados pelo Exército. Durante dias, meses, os corpos serviram de banquete aos urubus. A fedentina era sentida à distância. Euclides da Cunha, em "Os Sertões", resumiu em uma frase, o massacre que foi também Canudos: "Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada".

Em Mugonero, região montanhosa de Ruanda, uma chacina entre tantas outras do genocídio praticado pelos hutus contra os tutsis, é descrita por Philip Gourevitch em seu livro "Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias". Em templo e hospital adventistas, tutsis foram se proteger do ataque. Sentiam-se protegidos por pensarem que as milícias respeitariam a igreja, mas o pastor-líder dos Adventistas do Sétimo Dia, quando o cerco apertou, facilitou a fuga de alguns hutus e avisou aos tutsis que não podia fazer nada para salvá-los. "Já foi encontrada uma solução para o seu problema. Vocês devem morrer. (...) Deus não quer mais vocês", vaticinou o pastor. Em nome de Deus, 2 mil refugiados foram condenados ao extermínio por serem tutsis.

O filme de Ari Folman reavivou-me de imediato esses episódios, ao tempo que colocou na lista de meus assombros do mundo, o massacre de Sabra e Shatila, que eu não conhecia. Parecendo sair de um pesadelo, para outro pior, porque vem duplicado, daquilo que viveu e esqueceu e daquilo que viveu e se lembrou, o personagem aparece catártico diante do verdadeiro inferno que foi aquela guerra. É sua última aparição antes dos créditos finais, assim como a última cena em animação, com as mulheres se aproximando dele. Corte. Na sequência seguinte, ele usa imagens de uma reportagem feita à época como se fosse sua visão, num recurso conhecido por "câmera subjetiva" (veja aqui).

Fazendo percurso inverso de "Persépolis", "Valsa para Bashir" foi adaptado para graphic novel, gênero narrativo em quadrinhos, espécie de romance ilustrado para adultos. O trabalho de Marjani Satrapi merece um comentário especial em outro post, mas foi citado aqui pela proximidade tanto temática, quanto narrativa, na medida em que, sobre o primeiro motivo, ambos tratam de temas ligados a conflitos étnicos e políticos em uma região e num contexto muito próximos. Já o segundo motivo, diz respeito à escrita autobiográfica de seus autores, como sujeitos testemunhais dos episódios que narram.

sábado, 20 de junho de 2009

Entre Dakar e Maputo, mas para além da África

A África por ela mesma, sem limites e fronteiras coloniais


O Curso Avançado em Estudos Africanos do CEPAIA (Centro de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos), órgão da UNEB, tem sido um proveitoso momento de formação intelectual e acadêmica para professores de Ciências Humanas, Letras e Artes que lecionam e pesquisam temas relacionados à cultura, história e literatura africanas e afro-brasileiras.

Em três encontros realizados até agora, a participação dos professores envolvidos, cerca de 45 de diversos campi da Universidade, alcançou níveis altíssimos de debate com os palestrantes convidados, como foi com o Prof. Acácio Almeida (PUC-SP), na aula de abertura, sobre "África e Contemporaneidade", em seguida com o professor senegalês Boubacar Barry (Universidade Cheikh Anta Diop, Senegal), sobre "Teorias e Métodos de Pesquisa em História da África", e por último, com o professor moçambicano Severino Ngoenha (Universidade de Lausanne, Suíça), sobre "Pensamento, Filosofia e Antropologia Africanos".

A experiência que tive a partir do contato com os dois professores africanos só confirmou o que, desde o período do mestrado e como bolsista em 2003 do VI Curso Avançado sobre Relações Étnicas, Raciais e Cultura Negra da Fábrica de Idéias, CEAO-UFBA, eu pretendia fazer como pesquisador: regressar à África, não a uma África mítica e distante, embora ela faça parte de minha ancestralidade, mas a uma África das africanidades diaspóricas nas Américas, especialmente no Brasil.

Ao ouvir do Prof. Severino Ngoenha que a emancipação africana começou na diáspora com intelectuais e artistas afrodescendentes, mas sempre tendo a África como consequência dessa luta pela libertação colonial, pensei que, dentro de minhas limitações de leituras e estudos sobre o pensamento africano, não poderia deixar de assumir meu lugar de fala nessa história.

Como pesquisador e sujeito afrodescendente, sinto-me reponsável por dar continuidade e desdobrar o legado que essa geração heróica do Harlem Renaissance, do Pan-Africanismo e de outros movimentos negros nos deixaram.

Os professores Boubacar e Severino, africanos de diferentes formações, regiões e tradições, mas igualmente experientes na reversão, desconstrução e reinscrição de valores outrora assentados sobre a África, nos conclamou para acompanhá-los nessa passagem de bastão às gerações futuras do que produzirmos hoje.

Esse chamado me fez lembrar o que o Prof. Acácio disse enfaticamente: "Não se estuda África sozinho". É certo que temos nossos interesses particulares de pesquisa, mas o diálogo e o convívio com outros pesquisadores interessados em África nos possibilitam estar sempre aprendendo sobre as Áfricas que não conhecemos, sejam as de lá, entre Dakar e Maputo, entre Cabo e Cairo; sejam as de cá, entre Havana e Salvador, entre New Orleans e Porto Príncipe.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Cláudia Cunha responde

Cláudia Cunha está de volta à roda. Neste mês, ela faz temporada no Teatro Sesi, Rio Vermelho, sempre às quintas, 21h. E volta com novidades: assinou contrato com a Biscoito Fino para distribuição nacional de seu cd "Responde à Roda". O giro de sua roda se amplia e de Norte a Sul, até mesmo além-mar, a voz de Cláudia Cunha reverbera.

Em postagem anterior, que teve vários acessos, amigos e colegas conheceram, através de meus comentários, o trabalho de Cláudia. Muitos me pediram informações sobre onde encontrar o cd "Responde à Roda". Tenho emprestado o meu, que inclusive é mais dos outros, porque não pára em casa. Quem liga na Educadora FM, ouve também.

Cláudia mandou para mim um e-mail sobre o post que escrevi sobre ela. Não revelei seu conteúdo antes, porque ela me segredou, à época, a assinatura de contrato com a Biscoito Fino, mas como em A Tarde de hoje, 9.4, ela revelou esta conquista, transcrevo aqui sua mensagem.

Marielson,

eu nem sei como começar. Primeiro tenho que te pedir desculpas pelo silêncio e te dizer que eu gostei tanto, foi uma surpresa tão boa, que guardei pra depois...pra qdo tivesse mais tempo e tranquilidade pra te escrever, pra ler, reler e saborear - primeiro sozinha, depois com os amigos. Mas não tive trégua!! Até em cima de um trio no carnaval eu cantei! Você soube? Eu, Manuela Rodrigues e Sandra Simões montamos um projeto chamado "três na folia" q foi selecionado pelo edital da secult. Foi uma experiência inédita pra nós e maravilhosa, mas deu um trabalho enorme!

Bem, mas é sobre você e seu texto que quero falar. Fiquei muito feliz e tocada pelo que você escreveu, por sua sensibilidade, carinho e atenção. É tão especial quando a gente recebe um retorno...qdo tem uma idéia de como essa história que é tão sua, tão ansiada ressoa no outro...obrigada por isso e saiba que vale muito pra mim.

Esse Cd vai fazer seu caminho lentamente e eu estou (tentando ficar, rsrs) tranquila em relação a isso. Tem uma coisa muito boa, que ainda não divulguei (só para os mais íntimos), mas que compartilho com você: estou assinando com a biscoito fino que vai distribuir meu cd a partir de maio, no Brasil e fora. E estou muito feliz por isso.

Deixa eu te perguntar: posso divulgar seu blog na minha lista? E não só pelo texto sobre o cd, mas porque vc escreve muito bem, é um pesquisador daqui, desenvolve um trabalho lindo, e todo mundo tem que conhecer e se orgulhar! Rsrs.Vamos mantendo contato!!Beijo grande!

Cláudia

Vida longa para sua voz, Cláudia, nossos ouvidos merecem este canto do Pará, que se baianizou e, agora, é do mundo. Salve!

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Cláudia Cunha, voz para entrar na roda

Extasiado. É esta a sensação que tive ao terminar de ouvir a voz de Cláudia Cunha. Quem é? Ouça. Mas como sou língua-solta e dedos-corredios, não perco a vontade de falar e escrever sobre esta moça de Belém que desaguou por aqui em 1996.

Em sua trajetória por águas baianas, ela já ganhou o Troféu Caymmi, o V Festival da Rádio Educadora e o Prêmio Braskem. Com esta premiação, pôde lançar seu primeiro cd "Responde à Roda". O último dia da temporada de lançamento aconteceu em 1° de fevereiro, com sessão extra, no Teatro Gamboa Nova, e repeteco aberto ao público dia 11 no Pelourinho.

A escolha do Gamboa completou a riqueza sonoro-visual do show. Ao cantar a belíssima canção "Mar do Norte" (Ivan Bastos e Gil Vicente Tavares), numa sugestiva remissão à sua origem paraense ("Aquém do norte estou/ Mas não sei mais me achar aqui no sul"), as cortinas do fundo do palco se abriram para a baía ensolarada em tarde de verão. A voz clara e líquida se amalgama com a letra e a paisagem marinha.

O mar é recorrente nesse seu trabalho. "Aioká" (Alcyvando Luz e Carlos Coqueijo) explora a magia do mundo das águas, da morada de Iemanjá. Na performance desta canção, que foi o bis de encerramento do show, Cláudia Cunha em seu vestido branco, longo e rodado, com cabelos soltos e grandes, emoldurada pelo mar da Bahia, não poderia representar melhor o canto de Janaína, abrindo os festejos da Rainha do Mar do dia seguinte.

A circularidade e a infinitude que a imagem da roda traduz estão presentes nas canções, especialmente em "Responde à Roda" (Cláudia Cunha e Manuela Rodrigues), "No Girar de Alice" (Cláudia Cunha) e "Din Don" (Rodolfo Stroeter).

Na música que dá título ao cd, a gente entra com a cantora numa ciranda, brincadeira que integra todos os participantes numa girada só. Mesmo quem não está dentro é chamado para entrar. Essa comunhão é sagrada para que a vida ganhe em felicidade. É esse sentimento que vemos iluminado no rosto de Cláudia ao cantar "No Girar de Alice". A leveza da roda de Alice, "enquanto a tardinha cai macia no quintal", é a mesma leveza da voz de Cláudia ao cair da tarde mansa.

E já que a roda é elemento simbólico marcante na Bahia (roda de candomblé, roda de fogueiras de São João, roda de conversa), "Din Don" nos joga numa roda de capoeira e de samba. Tudo nesta roda nos lembra uma festa de rua de Salvador. Os instrumentos musicais citados na letra, como tambor e pandeiro, as evoluções dos capoeiristas e a dança da baiana referenciam ao formato da roda. A circularidade de que falei antes, é também memória. E Mestres Pastinha e Bimba são sempre lembrados numa roda de capoeira.

O acento em cantigas e canções folclóricas ou recriações dessas narrativas musicais é outro ponto forte do repertório do cd. Em letras como "Ganga-Zumbi" e "Putirum" (Sérgio Santos e Paulo César Pinheiro), os compositores jogam na roda de nosso imaginário elementos da cultura, das línguas e da religiosidade afro-ameríndia brasileira. Calunga, canjerê, Zambiapongo, Mutalambô, Zumbi, Ogum, gongá, cunhã, quarup, cauim, Mairá, Xingu, ararajuba, cocar, ajuru... Uma festa com trilha sonora que busca a integração a partir da dança. Não por acaso, expressão corporal que índios e negros ritualizam até hoje.

Sambas maneiros entram também na ciranda colorida e festiva como "Pra você gostar de mim" (Zé Renato e Joyce), delicado e sonhador, "Cabe um tanto" (Manuela Rodrigues), com arranjo pungente e acústico de Luciano Salvador Bahia, e "Seu Moço" (Roberto Mendes e Hermínio Bello de Carvalho). Nesta última o tom percussivo é bem do Recôncavo, não à toa com a ajuda vocal do próprio compositor Roberto Mendes, exaltando sua Santo Amaro de fundo de Baía.

O cd termina com "Auto-retrato" (Egberto Gismonti e Geraldo Carneiro). Só acompanhada com o piano, Claúdia canta a memória de um "cantor de samba", mas ela mesma se reveste em um trovador solitário das multidões, quando nos faz caminhar e girar pelo vasto mundo de suas lembranças e das nossas também.

Cláudia Cunha em seu My Space disponibiliza cinco músicas para quem quiser levitar com sua voz serena de soprano, mas que não fique apenas nesse aperitivo. A roda só gira toda se você ouvir todo o cd e assistir à sua performance no palco.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

As dobras do lençol - conto

uma história sobre o amor de mulheres


Ainda de olhos fechados e a cabeça virada para a janela, Vitória desliza a mão direita pelo colchão... Na primeira vez, toda sutileza. Como que não acreditando, desliza mais uma vez, agora, toda ansiedade. Abre os olhos e o sol faiscante quase a cega. Dorme de bruços, cara amassada no travesseiro e reage assim, vira o corpo bruscamente e... “Porra, cadê?!” Procura do outro lado da cama, debaixo... Corre pelo apartamento, sala, banheiro, “Ei, acordou cedo, hein?”... cozinha, área de serviço, “Você está onde?”... varanda, quarto. A manhã parecia não existir.

- Sumiu. Nada, não deixou nada. Você me ajuda a procurá-la?

Como? Não adianta ligar para os amigos, ninguém a conhecia mesmo.

Ainda com a cara amassada de sono e agora de decepção, o choro lhe entortava nariz, lábios, se joga na cama e cheira o travesseiro em que ela dormiu, procurando resquícios de sonhos ou um fio de cabelo preto e liso. Ah, seu perfume. Dança abraçada ao travesseiro sob som de “Love Theme”, de Vangelis, que embalara as promessas de amor eterno da noite anterior. Toma um banho demorado, relaxa na banheira e se lembra que ali, horas antes, afogava-se em seu sexo. “Por que foi embora e me deixou sozinha?” Ela deixou um recado sobre a mesa da sala, avisando que tinha de trabalhar, ligaria depois para marcar um novo encontro.

Sai do banheiro e toma café. Mastiga o pão como quem dilacerava a si mesma, com raiva de ter dormido demais. Mas sua voracidade tinha um quê de ainda estar com fome, talvez não mordeu com mais prazer aqueles seios durinhos, aquelas pernas grossas. Água na boca. “Quando volta?” Não contém nos olhos um dique de lágrimas.

O telefone toca e seu desespero é pouco, tropeça nas almofadas, cai e se machuca. A mão não alcança o fone. Silêncio. E o gemido de um tornozelo luxado. Uma semana de licença médica. Depois do gesso, voltou para a casa e deitou-se na cama, mas nesse instante o telefone toca novamente. “Merda! Por que não ligam pro celular?” De muletas, atravessa o corredor como um raio e consegue atender. “Alô!” Talvez estivesse enganada, mas naqueles segundos curtíssimos ela ouviu uma gargalhada sufocada e, repentinamente, cortada. “Alô! É Andréia?”

A mãe, aposentada e viúva, ofereceu-se para cuidar da filha caçula, afastada da família desde os dezessete anos devido às discussões com o pai que não entendia (“Nem quero entender”, dizia) a vida que a filha levava... “Eu atendo a todos os telefonemas, vou puxar extensão pro quarto”. A mãe, na sala, tricotava e assistia à tevê.

Dias depois, decide sair para resolver problemas pessoais que sua mãe não daria conta. “Minha filha, com esse pé?” Ela vai de táxi. “É rapidinho, mãe”.

Andréia liga de novo. “Não está em casa. Ela tem seu telefone?”. Resistiu em dar o número. “Eu ligo depois.”

Não é preciso dizer que ela não saiu mais para resolver problemas-pessoais-que-sua-mãe-não-daria-conta: ir à central telefônica e pedir que um amigo seu descobrisse o telefone da pessoa que ligou tal dia, tal horário para sua casa.

- É possível?
- Tentarei fazer isso por você, mas bico calado, senão sou demitido... Em três dias acho que resolvo.

Tira o gesso e começa logo a fisioterapia. Seu amigo lhe dá uma má notícia: “Telefone público.” A mãe também aproveitou a estada no apartamento para tirar o pó dos móveis, passar cera no chão... “Vitória, achei este bilhete debaixo do sofá.” Pena que não pôde pular, o tornozelo ainda doía, mas seus gritos de alegria deixaram a mãe num misto de preocupação e surpresa. “Andréia é uma daquelas amiguinhas suas, né?” Horas depois, um novo contato. “É ela, tenho certeza.” E atendeu ansiosa.

- Alô!
- Oi, Vitória.
- Andréia?
- Sou eu.
- Tudo bem?
- Tudo.
- E aí?
- Tudo bem.
- Demorou a ligar.
- Ufa, tenho ligado, mas...
- Nunca me acha, né?
- É.
- Naquele dia, você saiu e nem me deu...
- Pegou meu recado?
- Hoje de manhã, minha mãe encontrou debaixo do sofá.
- Deixei sobre a mesa.
- Deve ter sido o vento.
- Deve ter sido.
- Que loucura! E aí?
- Quase um mês.
- Quarta-feira fará um mês que a gente se conheceu.
- Andréia, quero vê-la de novo.
- Foi tudo tão bom!
- Onde?
- Venha pra cá.
- Que horas?

Na quarta-feira, ela se arruma e sua mãe pergunta se vai jantar fora, prepararia seu prato preferido: lasanha de quatro queijos. Olha para o relógio e responde que sim, só para ela não ficar insistindo para voltar cedo, embora já fosse grandinha o suficiente para decidir com quantas mulheres namoraria numa noite. Amanhã, agradeceria à mãe pela companhia nessas semanas e pediria carinhosamente que ela voltasse para casa, daria até um presente: passagens para visitar uma irmã em Manaus que há tempo desejava rever. “A lasanha vai estar no forno. É só esquentar.”

Despede-se e pede pressa ao elevador. Marcaram às nove, mas seu relógio estava adiantado uma hora. Precisou passar no shopping e comprar chocolate para presentear.

- É uma pessoa especial - respondeu à balconista da loja.
- Temos bombons especiais para pessoas especiais.
- Não tem bombons especialíssimos?
- Só a senhora é que pode torná-los. Preciso dizer como?

Passeia um pouco mais pelo shopping até dar oito e meia. Dirige o carro com mãos de suor. Não conseguia nem enxergar as sinaleiras de tão nervosa, acelerava para chegar antes da desistência, que poderia trair-lhe o desejo, tamanha a ânsia de reencontrar Andréia. O porteiro comunica sua chegada. Agora, pede lentidão ao elevador, mas o segundo andar fica logo acima do primeiro. Respira fundo e aperta a campainha. De repente, arrepende-se de não ter vestido aquela calça creme, menos marcante. Suava muito, mas antes que passasse a mão pela testa, a porta foi aberta. Sua respiração fica suspensa por um fio de deslumbramento e o boa-noite sai tênue, mínimo. “É seu”. Andréia agradece o presente e a convida para entrar. Nos primeiros minutos, aquele meio sorriso e o olhar fingindo interesse pelos bibelôs da estante, pela cesta de revistas, pelas plantas de plástico, pelos livros...

- Você aceita alguma coisa pra beber?
- Coca-cola com limão e bastante gelo.
- Vou acompanhá-la.

“Álcool, por enquanto, não.” Pensou. Mas o bate-papo descontraído não mais suportava Coca-cola.
- Aceita uma cerveja?
- Pode ser.

“Só um copo não faz mal. Tenho que ficar alerta esta noite.” Vitória pensou. Mas as risadas fortuitas, as mãos deslizando pelas pernas e seios e os rostos juntinhos denunciavam vários copos etílicos.

Elas se puxam para o quarto e caem na cama. Beijos famintos apressam o começo da transa. Vitória sente algo estranho. “É impressão minha ou esse corpo frio me resfria? Cadê o cheiro de patchouli que exalava de seu sexo? Cadê seu abraço de anjo que me introduzia no paraíso? Cadê seu gozo calmo que me anestesiava?” Não foi como da primeira vez.

Andréia dorme profundamente, Vitória fica acordada. Sai da cama devagar, vai à cozinha, bebe um pouco de suco e come um sanduíche. Passeia com mais atenção os olhos pela sala e descobre alguns detalhes não percebidos quando entrou no apartamento. Lembra-se que na primeira noite conversaram muito sobre predileções, tais como músicas, autores, comidas, e algo que lhe chamou a atenção foi seu comentário sobre a coleção de fotos de Maria Bethânia e Elizabeth Taylor. “Quando você for lá em casa, verá Bethânia e Liz por todos os cantos da casa. Preciso da voz de uma e dos olhos da outra.” Onde estão Bethânia e Liz? Sala, quarto, corredor, banheiro e cozinha de paredes nuas. O telefone toca. 5h12. Não acordaria Andréia. A secretária eletrônica roda a saudação. Bip. “E aí, Dé, fez tudo certinho? Tô louca pra saber como foi o babado, espero que ela não tenha desconfiado de nada. Olha, essa é a última vez que fazemos isso, já nos metemos em muitos rolos. Se não fosse você, não faria essa brincadeira de troca-troca. Beijos, ligue pra mim quando acordar. Andréia.” Mensagem gravada. Seu corpo desaba no tapete, sua mão não segura mais o copo, seu coração explode. Depois de alguns minutos tentando inventar uma explicação, ouve a gravação para se certificar de que não estava devaneando. Voltou para o quarto, abriu o guarda-roupa e procurou por mais provas. “Uma foto de Andréia com Andréia?” Ainda insatisfeita, abriu a bolsa e procurou a carteira de identidade, a outra era Andreza. E aquele não era o apartamento de Andréia. “Idiota, sempre foi idiota, infinitamente idiota, como pôde cair nessa?” Veste-se rápido e desce as escadas escorregando nos sapatos. Nem se lembra que estava de carro e pega um táxi.

O sol ensaiava os primeiros raios e no banco de trás do carro um choro baixo é entrecortado por soluços até ser cortado de vez pelo silêncio: Vitória passava em frente à boate onde conheceu e se entregou apaixonada para Andréia, “Para que os corpos vis te não desejem/ Hei-de dar-te o meu corpo, e a boca minha/ Pra que bocas impuras te não beijem!”[1] Tira da bolsa a foto das irmãs e a rasga em pedacinhos com uma fúria de quem dilacera corpos, arranca cabelos, fura olhos, enforca pescoços, cospe rostos, esmurra bocas... e ainda os deixa expostos para vermes e urubus se banquetearem, sem arrependimento de ter esquartejado as irmãs. Mas Andréia e Andreza não morrem, também não deixam de perturbar Vitória, rondando sua cabeça, gargalhando, satisfeitas com a brincadeira.

[1] “Filtro”, de Florbela Espanca

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Aljazeera na Bahia


Desde 11 de setembro de 2001 que o mundo ocidental (ou pós-ocidental a partir daquela data) tem ouvido falar constantemente em Aljazeera (الجزيرة, em árabe: "A península") . Malgrado suas conseqüências para o mundo, o ataque terrorista ao World Trade Center tornou-se emblemático para esta emissora de televisão, criada em 1996, Catar, no Golfo Pérsico. Atualmente é o maior canal de notícias do Oriente Médio. E já conquista o mundo pela Aljazeera Internacional. Seu sinal se espalha por 120 milhões de residências em 80 países.

A repórter Daniela Pinheiro, da revista Piauí, mostra que a televisão sediada em Doha, capital de um dos países com maior renda per capita do mundo, tem desafetos e censores não só nos Estados Unidos, mas também dentro da Liga Árabe, da qual o Catar é membro.

O emir do país, xeque Hamad bin Khalifa al-Thani, é fundador-proprietário da televisão e, segundo diretores da emissora, ele não interfere na linha editorial das reportagens, embora no próprio país a censura à imprensa ainda exista. É um paradoxo, já que a intenção da Aljazeera é ser conhecida no mundo inteiro como contraponto aos canais tradicionais de cobertura jornalística dos Estados Unidos e da Europa, como CNN e BBC.

Plagiando o título de um dos clássicos dos Estudos Culturais, "Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente", de Edward Said, árabe nascido em Jerusalém, é possível que Aljazeera esteja reinventando o ocidente a partir de Catar. E mostrar a ignorância que o Ocidente tem sobre o Oriente Médio, que ele próprio inventou.

Nas Américas, a emissora já conta com escritórios em Buenos Aires e Caracas e correspondentes em São Paulo e Cidade do México. Planeja abrir outra sucursal em Bogotá. Não conseguiu permissão para adentrar nos Estados Unidos por motivos que ninguém precisa fazer esforço para entender. Ela foi acusada por George W. Bush de ser "a porta-voz do terror do mundo", pelo fato de divulgar vídeos com declarações de Osama bin Laden sobre suas ações terroristas. Mas é dos Estados Unidos o maior número de acessos do conteúdo da Aljazeera disponibilizado no You Tube, onde tem um canal exclusivo.

Até no Brasil, país democrático, a Aljazeera sofreu censura. Segundo Daniela Pinheiro, mesmo autorizada a cobrir a passagem de Bush por São Paulo em 2007, a televisão não pôde transmitir do centro da cidade. João Carlos Saad, da Rede Bandeirantes, de origem sírio-libanesa, cedeu o terraço da emissora para a cobertura.

A Aljazeera já fez diversas reportagens sobre o Brasil. Especificamente sobre a Bahia, produziu matérias com captação exclusiva de imagens e depoimentos, mas ainda repetindo informações acerca da identidade baiana, já concebidas como inerentes e essencialistas da cultura e sociedade locais.

O tratamento e a dinâmica do conteúdo pautado foge um pouco das reportagens viciadas de emissoras estrangeiras do Ocidente, as maiores produtoras de imagens estereotipadas sobre o Brasil para "inglês ver". Talvez a Aljazeera por ser um outro olhar daquilo que podemos chamar de "equívocos cristalizados" do Ocidente sobre o próprio Ocidente (leia-se Estados Unidos e Europa sobre a América Latina), esteja pensando numa rede de comunicação mundial pós-colonialista, ou seja, de verbalização o que outrora e mais recentemente mesmo o universalismo eurocêntrico calou ou ocultou.

E neste sentido, duas reportagens sobre a Bahia chamaram a minha atenção. A primeira, "Obama inspires afro-brazilians" , é sobre a repercussão da vitória de Barack Obama em Salvador. Representantes de comunidades negras ligadas ao candomblé e aos movimentos sociais de combate ao racismo e a intolerância religiosa comentam, como Marcos Rezende, do Coletivo de Entidades Negras, sobre a importância de um negro ascender ao posto de governante de um país de maioria anglo-saxônica e como isto influenciará na relação dos Estados Unidos com o mundo.

A origem do presidente, negro-mestiço de pai africano e muçulmano com mãe norte-americana e branca, nascido no Havaí, oposição a Bush contra a invasão no Iraque e aberto ao diálogo com a diversidade, assim como a resposta de outras culturas e povos a esta possibilidade de aproximação, já é por si só uma pauta permanente na grade da Aljazeera, ela mesma com equipes de repórteres e apresentadores de diversas nacionalidades e etnias.

A outra reportagem, "Race and Racism in Latin America: Brazil", trata do racismo no Brasil, com depoimentos do promotor Almiro Sena Soares, coordenador da Promotoria de Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia e do Dep. Bira Coroa, da Comissão de Educação da Assembléia Legislativa. O ponto principal da matéria é sobre as ações afirmativas na Educação em vigor no país. Para exemplificar, a repórter enfatiza que a inserção do negro na Universidade, possibilitada pelas cotas, diminui as diferenças raciais e econômicas entre negros e brancos.

Obviamente que a matéria é uma tentativa de abordar assunto tão complexo e cheio de desdobramentos sobre as relações inter-étnicas no Brasil. Já começa com um senão: reproduz o mito da democracia racial, através de uma legenda "Racism in Brazil: diverse society struggles for harmony". A harmonia deveria ser trocada por reparação. Não só ela racial, mas também social. Embora não existam conflitos abertos e segregacionistas como se viram na África do Sul e nos Estados Unidos, a tal harmonia imaginada no Brasil só tem um fim, ou seja, edulcorar o que é fel na vida cotidiana dos negros brasileiros.

O acesso ao conteúdo completo das reportagens de Aljazeera é feito pelo site oficial: http://english.aljazeera.net/. A divisão desses conteúdos é feita por regiões. Sobre o Brasil, está em Américas, onde também incluem os Estados Unidos. Isto é bem sintomático quanto ao projeto de expansão de seu sinal e influência, porque diferentemente dos Estados Unidos, a Aljazeera não enxerga o país do Tio Sam um continente ou um mundo a parte dos outros, mas integrado a uma geografia da qual precisa ter relações de respeito à soberania de cada nação e não de ingerência em seus assuntos internos.