domingo, 30 de novembro de 2008

Domingos Sodré: um sacerdote africano


João José Reis sabe contar história. A sua técnica narrativa surpreende pela qualidade e quantidade de imagens e informações que alinhava para dar visibilidade a acontecimentos e personagens esquecidos da história da Bahia no século XIX.

Desde "A morte é uma festa" (1991) e "Rebelião escrava na Bahia" (2003), João José Reis desenvolve um gênero historiográfico cuja estrutura privilegia o movimento pendular de abordagem de um tema. A partir de um episódio ou personagem, ele amplia para a sociedade onde surgiu e retorna para o ponto inicial a fim de entender como aquele acontecimento ou pessoa se relaciona e interfere (com e)na macro-história, como neste caso, na escravidão. Nesse ir e vir, ele faz uma leitura diferente e realçadora das relações sócio-culturais de uma Bahia negra e escravista, até então feita por um olhar míope ou turvado de outros historiadores.

Aliadas as técnicas de escrita e de pesquisa, esta em sua maioria de fontes primárias, João José Reis nos presenteia com livros cada vez mais bem elaborados quanto ao trato científico, mas sem escusar da linguagem e do formato acessíveis ao leitor não-acadêmico interessado em História.

Neste seu último trabalho, "Domingos Sodré: um sacerdote africano - escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX"(2008), ele se aproxima do que chamamos em Literatura de biografia crítica, em que se analisa a vida de uma personagem a partir de sua mediação e produção num dado contexto literário ou extra-literário. Procura-se entender assim sua participação como mediador simbólico e o resultado disso no seu ambiente de circulação.

Domingos Sodré, africano liberto, proprietário de escravos e curandeiro, segundo o autor em entrevista a Brasileiros, foi quem pediu para não continuar no limbo da história ou mofar nos arquivos. Personagens negros, deliberadamente apagados (aqui a associação com morte e ocultação de cadáver não é mero efeito retórico), aparecem aos olhos de quem não é cego ou mesmo de quem não é surdo, quando ainda existem testemunhas orais que dão conta dessas trajetórias anônimas.

A Bahia de Domingos Sodré é narrada com maestria por João José Reis. Ele nos faz penetrar nos interstícios da vida de seus atores, diretamente ligados a Domingos ou a ele transversalmente relacionados, para mostrar as estratégias de sobrevivência e sociabilidade de homens e mulheres negros em tempo de cerceamentos e submissões.

Domingos Sodré, pelo que deixou até então, não pode ser considerado um autor de textos literários, mas os documentos jurídicos e burocráticos resultantes de suas atividades (e atuação, como agente de sua história) traçam uma linha narrativa também autobiográfica que possibilita a escrita de si por outro revelada.

E neste sentido, a autoria é compartilhada: João José Reis escreve uma biografia de uma autobiografia não escrita. A leitura vale por tudo que precisamos saber sobre essas vidas e vozes proscritas.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Acontece que eu sou baiano


Esta será, possivelmente, a foto de meu livro "Acontece que eu sou baiano: identidade e memória cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi". Ele sobe a Ladeira do Pelô, com seu violão no ombro. É como disse Jorge Amado: "Caymmi é o cantor das graças da Bahia". E o Pelourinho é emblemático nesta composição identitária da Bahia. Igrejas, sobrados, ladeiras. Foi a partir dessa geografia pessoal e afetiva, que ainda inclui Itapuã, que Caymmi reinventou sua São Salvador.

Depois de quatro anos de dissertação defendida no mestrado de Literatura e Cultura, eis que finalmente o livro oriundo daquela pesquisa será lançado. Aprovado pela FAPESB para receber incentivo de publicação, o livro sairá pela Eduneb no próximo ano.

Estou felicíssimo por isto, porque desde a pós-graduação até o órgão de fomento à pesquisa, passando pela editora, o trabalho sobre Caymmi tem recebido pareceres de excelência e qualidade científica.

Agora é hora de aparar as arestas, revisar, inserir mais informações para uma edição mais atualizada sobre Caymmi e sua obra. Muita coisa mudou de quatro anos para cá. Algumas abordagens feitas perderam o viço do momento, mas no geral, minha leitura do cancioneiro caymmiano e de sua personalidade continua seguindo uma linha analítica e interpretativa que contesta a baianidade como essencialista.

Este livro é uma homenagem antecipada que eu faria a Caymmi quando ele fizesse 100 anos. Eu esperava que ele chegasse até lá. Embora muito doente, ainda assim a memória do compositor aos 94 anos era prodigiosa. Ele era o último de uma geração de artistas da Era do Rádio, portanto, viveu diferentes fases da música popular brasileira, sem que fosse visto como passadista ou antiquado. Ao contrário, Caymmi é reverenciado por todas as tribos de músicos e cantores.

Em 2009, Caymmi e os afoxés serão tema do Carnaval. Se Caymmi fosse escolhido, preterindo os afoxés, assim mesmo estaria fazendo uma homenagem a esses grupos musicais negros, conhecidos também por "candomblés de rua". Caymmi foi autor de uma canção chamada "Afoxé" (1975) em que canta a perfomance do ijexá. Se fosse escolhido o tema afoxés, lembraríamos também de Caymmi, porque ele, sem dúvida, é a própria Bahia carnavalizada.