domingo, 13 de dezembro de 2009

Centro de Música Negra


O projeto de Carlinhos Brown de revitalizar o Mercado do Ouro com a criação do Museu du Ritmo ainda não chegou ao ápice de sua inquietação como produtor midiático. O espaço é uma opção já consolidada de shows na cidade, mas a ideia de transformá-lo em um centro cultural que faça jus ao nome que ele batizou só começou a ganhar fôlego com um evento que, a meu ver, foi o melhor de música de 2009.

O Festival de Músicas Mestiças, ocorrido em novembro, deu o tom do que pode ser a programação do futuro Centro de Música Negra no QG do Brown e, assim, resgatar aquela área do Comércio como espaço de sons e ritmos negro-africanos.

O Mercado do Ouro era nos séculos XVIII e XIX um dos centros de abastecimento mais movimentados de Salvador, pois ali existia o Cais do Ouro, lugar de desembarque de mercadorias dos navios. A concentração de trabalhadores braçais negros era evidente devido à própria lógica do sistema escravista necessitar de seus serviços como carregadores.

Mas nem só de labuta viviam os escravos. Nos interstícios da sociedade repressora, eles se divertiam. A música ecoava pela feira, pelo mercado, pelos becos... e nada podia impedir, embora posturas municipais tivessem tentado, que ela fosse registrada na memória das pessoas que por ali passavam.

A diáspora negro-africana resultou males irreparáveis, mas a resistência escrava usou de suas estratégias para que a África de seus ancestrais não afundasse com os milhares de corpos na travessia atlântica. Aos sobreviventes e resistentes, coube a reinvenção em terra estrangeira de suas tradições. O samba, o jazz, o blues, o hip hop, o soul, o funk, o rhythm'n'blues, a salsa, a rumba, o reggae são patrimônio de todos nós, mas tem algo que não escapará à sua criação: a África negra.

A intervocalidade foi a marca deste Festival. O encontro de vozes até então inédito nos fez ter a certeza de que elas já tinham se cruzado em algum instante pelo Atlântico negro. Tcheka, cantor de ritmos de Cabo Verde, como o funaná e o batuque, com Mariene de Castro e seu samba-de-roda do Recôncavo; Les Tambours de Brazza, grupo instrumental, com Carlinhos Brown e seus timbaus e atabaques; BélO, cantor do Haiti e seu estilo afropop, com Margareth Menezes na mesma pegada sonora; Mounira Mitchala, do Chade, com sua performance vocal e percussiva interagindo com o Olodum e, Tiken Jah Fakoly, reggaeman da Costa do Marfim e Senegal, com o nosso Lazzo Matumbi.

Tudo isso foi encanto para os ouvidos. Com a criação e efetivo funcionamento do Centro de Música Negra a nossa expectativa é de que essa experiência não seja apenas uma eventualidade, mas que seja permanente. Se temos o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA como referência em pesquisa acadêmica e o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, atualmente com exposição sobre o Benin, o projeto de Carlinhos Brown deverá ser o primeiro no Brasil com este formato.

O Governo do Estado criou em 1993, no Parque do Abaeté, a Casa da Música. Seu acervo audiovisual e bibliográfico é pequeno e não houve um acompanhamento sistemático das produções realizadas nos últimos anos. Sua estrutura é defasada em relação aos novos recursos tecnológicos de exposição midiática e museológica, nem conta com uma programação que atraia o público. A música afro-baiana tão rica em compositores, instrumentistas, intérpretes, grupos e produtores merece uma inserção diferente nessa comunidade transatlântica de música negra ancorando em Salvador esse centro cultural. O primeiro passo já foi dado: o Festival de Músicas Mestiças e a abertura do Centro com uma mostra de vídeos sobre cada ritmo e seus artistas mais expressivos. O segundo só depende de patrocinadores e dos governos. Queremos no terceiro visitar o projeto inteiro para deleite e conhecimento de nossa ancestralidade musical.


Margareth Menezes e BélO

Tiken Jah Fakoly e Lazzo Matumbi


Mounira Mitchala e Olodum