
Vista da Baía, a partir do alto de um bairro do subúrbio de Salvador
O brasileiro é sonhador. Sonha com o carro 0km, com a tevê digital, com a casa própria... Esse último desejo talvez seja o que movimenta a força física e mental para sua realização, vide o déficit habitacional no Brasil de quase 70% da população.
Com a expansão do crédito imobiliário, os brasileiros que ascenderam na escala social nos últimos 10 anos têm aproveitado para conseguir seu apartamento ou casa, outrora só possível se entrassem na lista de desabrigados devido a alguma catástrofe ou expulsos de uma ocupação ilegal para receber uma habitação popular.
Aos resistentes, quando compram um terreno, ainda passam pela dificuldade de construir. Com pouco dinheiro, a casa é erguida a conta-gotas, o que pode levar anos, mas pelo menos, o sonho da casa própria se materializa, às vezes, com o sonhador morando sem o imóvel estar com condições de moradia.
Sem teto, a laje é o limite que os sem-teto sonham . "Bater a laje" é uma realização inigualável na vida dos sonhadores. Já virou um rito de passagem pela qual não somente o dono, mas toda a vizinhança tem que experimentar, até porque os vizinhos, se não vivenciaram essa ação comunitária no seu imóvel, um dia será a sua vez de congregar todos na construção de sua subida.
Na laje, se faz de um tudo. Lavar e estender roupa, tomar banho de sol, empinar pipa, promover festa à base de churrasco e pagode... No Profissão Repórter desta semana, o tema foi este, a laje como espaço de sociabilidade nas periferias de São Paulo e Rio de Janeiro.
Como no Rio de Janeiro as favelas tem localização privilegiada nos morros circundantes à Baía de Guanabara, os donos têm uma sensação de que não precisa pagar caro por uma visão do mar. Subir à laje, é como subir à cobertura de um apartamento nas avenidas Vieira Souto ou Atlântica.
Em Salvador, não é diferente. A faixa de terra que vai do Porto da Barra até o subúrbio ferroviário nos dá momentos de contemplação da Baía de Todos os Santos, seja na cobertura da Morada dos Cardeais, na Vitória, o metro quadrado mais caro do Nordeste, até na laje de uma casa no Alto do Cabrito, um dos metros quadrados mais populosos e pobres da cidade.
E por falar em Cabrito, foi lá, na década de 70, antes de virar conjunto habitacional, onde eu passava temporadas no sítio de minha avó. Casa de telha vã, não precisávamos escalar para ver o pôr-do-sol no fundo da baía. Dali mesmo, da varanda, víamos o sol dar lugar a lua, ouvindo as cigarras e os grilos.
Quando queríamos ver o mar de uma altura maior, inclusive os prédios da Cidade Alta, sentávamos no balanço preso a uma mangueira e pedíamos que nossos tios, sem pena, nos empurrássemos com tanta força que a sensação era de que estávamos voando para lá e mergulhando nas águas da baía.
Hoje, no Cabrito, tudo virou laje, mas a visão continua exuberante.
á três anos, quem ousasse falar de poesia a Rodrigo Inácio seria recebido com um olhar atravessado de reprovação. Era melhor que ficasse longe, guardando um perímetro seguro do interlocutor. O jovem metalúrgico tinha uma opinião fechada sobre quem gostava de versos e rimas. “Eu achava que poesia era coisa de viado”, lembrou, sem tergiversar. Tudo mudou quando precisou correr atrás de palavras definitivas para se dirigir a uma moça. Ciente das próprias limitações lexicais, viu-se obrigado a consultar o grande repositório da sabedoria universal e foi ao Google. No campo de busca, Inácio digitou “Frases bonitas”. No primeiro clique, deparou-se com o poema “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade. Os versos que leu na tela não contribuíram para melhorar seu juízo sobre os poetas. “O cara deve ser idiota para escrever um negócio desses”, concluiu, no que foi a sua primeira crítica literária.
Inácio não se deu por derrotado. Por ironia, acabou gostando mesmo foi de um verso atribuído erroneamente a Drummond na internet – aquele que diz que “A dor é inevitável, o sofrimento é opcional”. Aquilo, sim, soava bem. Esmerou-se na escolha da fonte e despachou o verso à sua bela, que respondeu dizendo ter achado “interessante”. A reação foi suficientemente animadora para incentivar Inácio a gastar mais Drummond para cima da moça – agora do legítimo, não do falsificado. Num sebo, comprou O Amor Natural para dar-lhe de presente. Não sabia, claro, que aquele era o livro de poemas eróticos do autor, no qual línguas lambem pétalas vermelhas e o poeta suga e é sugado pelo amor. O rapaz se envergonhou de lembrar do caso. “Você é um besta de me mandar um livro daqueles”, foi a resposta que a menina lhe deu.
ara o jovem metalúrgico, o único problema com sua paixão pela poesiaé não ter com quem conversar. No serviço, há quem ache que Rodrigo Inácio é viado. “Mas eu não ligo”, assegura. A única pessoa com quem fala sobre poemas é uma garota que conheceu num ponto de ônibus. Ele puxou assunto quando viu que conhecia o livro que ela lia – Pollyanna. “É sobre uma menina bobinha que acha que tudo no mundo é belo”, explicou.