sábado, 1 de outubro de 2011

João do Rio, um flâneur carioca


João do Rio


João Paulo Emilio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921), nasceu antes do Rio de Janeiro tornar-se Capital Federal, nos "buliçosos" anos que fecharam o Império de D. Pedro II. Passou a ser conhecido por João do Rio nos anos da República, quando a imitação européia de viver, comer, beber, se vestir, além de fazer arte, influenciou as mentes da elite social e cultural brasileira, especialmente a carioca.

A leitura que João do Rio fez deste vanguardismo estético na literatura resultou uma obra "aclimatada" ao gosto nacional bastante singular entre os escritores de sua geração.

A começar pelo próprio perfil tanto literário quanto pessoal dele, talvez incomum numa sociedade letrada avessa a rasgos de ousadia artística e de comportamento.

Mulato, homossexual e gordo, isto não era impeditivo para João do Rio se esconder. Fino, inteligente e simpático, conquistou o público elitizado e popular com sua lavra bem desenhada e irônica ao traçar um Rio de Janeiro atrás do cartão postal de cidade com pretensões de ser a Paris dos trópicos.

Ele saía às ruas, com sua performance de flâneur, tal qual Baudelaire, e vestido em trajes bem cortados e caros, tal qual Oscar Wilde, para captar a "belle époque" carioca de todos os ângulos.

"A alma encantadora das ruas" é um livro de crônicas, cuja leitura é imprescindível para conhecermos este período no qual a literatura, pensando aqui no livro de Nicolau Sevcenko, era vista como missão, na medida em que os escritores assumiam um papel de intérprete do Brasil em fase de (re)definição identitária, com tantos problemas sociais e políticos pós-Abolição.

Tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras e levou para a Casa de Machado de Assis o que nas torres de marfim era visto como "mundano". Falar de personagens que não estavam nos romances tradicionais foi inclusive uma forma de ascensão de um gênero textual pouco estudado e aceito pela crítica literária de então, mas que durante o século XX verá o aumento de leitores e o surgimento de cronistas exemplares, como Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Inácio de Loyola Brandão, Luis Fernando Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro...

João do Rio em HQ será o máximo da divulgação em círculos de leitores pouco interessados em autores antigos, devido talvez a linguagem ou temas passadistas. Com o visual do graphic novel, tão presente hoje na editoração de obras literárias, o leitor universitário, aquele com quem tenho mais proximidade, passará a vê-lo com mais interesse, até porque serão formadores de outros tantos como professores de Literatura nas escolas e disto não podem prescindir.

João do Rio é finura de personalidade e de estilo, sem discriminar a patuléia e os "marginais" do Rio de Janeiro, um microcosmo do Brasil urbano do início do século XX. O funeral do escritor que morreu jovem, aos 40 anos, de ataque cardíaco, foi um dos mais concorridos da cidade, só visto igual no de Getúlio Vargas e Carmen Miranda.

Foi ovacionado pela rua que tanto celebrou.


São Paulo, sábado, 01 de outubro de 2011
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ROCK IN RIO? NÃO, JOÃO DO RIO

Allan Sieber e Allan Rabelo produzem livros em que adaptam para HQ a obra do cronista, autor de "A Alma Encantadora das Ruas"

Allan Sieber e Allan Rabelo
Acima, em adaptação de Allan Sieber para o conto "Pequenas Profissões", marinheiro é enganado no porto por ambulante

ROBERTO KAZ
DE SÃO PAULO

É 1916. João do Rio bebe vinho, em um camarim, ao lado da dançarina americana Isadora Duncan (1877-1927).
Ela começa a se despir, após uma apresentação no Theatro Municipal do Rio, mas é prontamente interrompida por ele: "Querida, por favor, não perca o decoro. Troque-se atrás do biombo."
Ela brinca -"Já viste mais que isso, João"-, relembrando o banho que tomara, nua, em uma cachoeira da Tijuca. "Parece ter gostado."
"Puro prazer estético", responde João do Rio.
A cena, desenhada por Allan Rabelo, faz parte do projeto de adaptação das obras do cronista João do Rio (1881-1921) para as HQs.
Há duas em andamento: a de Rabelo (com roteiro de S. Lobo para a editora Barba Negra) e a do cartunista Allan Sieber (para a Desiderata).
O trabalho de Rabelo e S. Lobo deve ficar pronto em 2013. Por ora, eles estão adaptando "A Alma Encantadora das Ruas", coletânea das crônicas publicadas por João do Rio no jornal "A Gazeta de Notícias" e na revista "Kosmos", entre 1904 e 1907.
Os dois, que já trabalharam na adaptação "Irmãos Grimm em Quadrinhos" (Desiderata), tomaram a liberdade de criar personagens, como Massarelo Lopes, imigrante que dá golpes baratos, faz michê e tem um caso com João.
Se ativeram, no entanto, à linguagem da época. Assim, falam do suposto "flirt" (flerte) do cronista com Isadora Duncan, quando ela esteve no Rio em 1916.
As crônicas de João do Rio retratavam, com afeto, um submundo de personagens marginais que compunham a fauna urbana carioca no começo do século 20.
Eram ciganos, prostitutas, tatuadores, marinheiros e vigaristas que esfolavam gatos mortos para vendê-los, aos restaurantes, como lebres (daí a expressão "comprou gato por lebre").
João do Rio, ele mesmo, não representava os padrões vigentes: andava de fraque verde, era gordo (tinha hipotireoidismo) e homossexual.
Segundo João Carlos Rodrigues, autor de "João do Rio - Vida, Paixão e Obra" (Civilização Brasileira), a faceta "maldita" das crônicas refletia um lado também maldito do autor. "Ele era um dândi, que frequentava a alta sociedade mas era contra ela."
Essa postura irônica foi uma das razões que motivaram o cartunista Allan Sieber a também fazer uma adaptação, a ser lançada em 2012.
"No começo, sugeriram 'O Triste Fim de Policarpo Quaresma', do Lima Barreto, que não combinava com o meu traço", disse Sieber. "Quando trocaram pelo João do Rio, topei, porque ele tinha aquele ar meio cínico."
Sieber, quadrinista da Folha, dividiu sua versão em três partes. Baseou-as no conto "O Homem de Cabeça de Papelão" e nos livros "Dentro da Noite" e "A Alma Encantadora das Ruas".
Diz quase não ter alterado a narrativa: "Eu ficava travado com a reconstituição histórica, mas o restante estava ali, pronto". Preocupou-se em não fazer "um livro condensado para idiotas, um 'João do Rio for Dummies'".
Também no livro de Sieber há cenas em meio a prostitutas, michês e trombadinhas. Numa delas, o texto diz: "As meretrizes mandam marcar corações com o nome dos amantes. Se brigam, removem a tatuagem e marcam o mesmo nome no calcanhar. É a maior das ofensas: nome no chão, roçando a poeira...".

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