terça-feira, 5 de agosto de 2014

Nordestinidades Caymmianas



Artigo publicado na Revista Nordeste. Link para edição e abaixo texto original


Dorival Caymmi completaria 100 anos no dia 30 de abril de 2014. Ao falecer, em 2008, com 94 anos de idade e 70 de carreira, o compositor deixou registradas 120 composições em seu cancioneiro. Tomando a referência de quase um século de trajetória pessoal e artística, e comparando com outros compositores com menos tempo de idade e de experiência, a ideia é de que Caymmi produziu pouco, o que preconceituosamente reativa sua imagem de preguiçoso e por extensão a do baiano. 

Dorival até admitia que o chamassem de preguiçoso, mas esclarecia que sua preguiça era laboral e contemplativa quando era criar. Dizia que, enquanto muitos compositores de sua época se gabavam que tinham 200 ou 300 músicas na gaveta, ele ao contrário só contava que tinha muito menos do que isso, mas tudo com qualidade, porque quanto mais acumulavam, mais davam impressão de que havia bagulho no meio. 

A obra de Caymmi é resultado de sua experiência simbólica e material, afetiva e festiva, social e cultural com Salvador, onde viveu até os 23 anos e depois por quase uma década nos anos 70, e com o Rio de Janeiro, onde, por mais de 60 anos, construiu sua carreira profissional e a sua família. É certo que a maioria de suas canções está diretamente ligada à sua memória baiana, mas sua mediação como baiano em outros contextos e identidades possibilitou que a sua criatividade musical abarcasse outras referências culturais, transformando a Bahia universal. Mas não só a sua terra, o Nordeste também. 

Embora a Bahia seja no complexo identitário do Nordeste um território específico em termos físicos e humanos, ainda assim faz parte de uma invenção de Brasil a partir de engendrações políticas em vários períodos da história nacional como uma região à margem de um modelo evolutivo e modernizante econômico e social. Quando se fala da Bahia, não a dissociam do Nordeste, até porque a caracterização mais restritiva de seu clima e natureza, a saber, o semi-árido, compõe a maior parte de suas dimensões territoriais. 

Assim como a Bahia, o Nordeste não é somente seca. E Caymmi como seu representante, sem estar filiado a grupos institucionalizados, mas nem por isso alheio ao poder de afirmação que sua música passaria a operar no imaginário nacional, mostrava o quanto que a voz do Nordeste através da música não se calaria diante do preconceito e da exclusão. 

Dorival Caymmi era contemporâneo de Luiz Gonzaga, circulando e se cruzando com ele nos corredores das rádios e nos points artísticos do Rio de Janeiro das décadas de 1940 e 1950, quando a produção radiofônica e fonográfica irradiava para todo o País a diversidade musical de seus artistas. Caymmi com seus sambas baianos e Gonzagão com seus baiões afirmavam a imagem do Nordeste a partir de sua pertença de lugar mais íntimo. Cada um na sua nordestinidade dimensionava suas identidades culturais em dicções e estéticas sonoras diferentes, mas iguais no intento de cantar e traduzir suas experiências nordestinas para um público acostumado a ouvir até então apenas marchinhas cariocas. 

Já de alcançado sucesso, depois de estrear em 1939 com seu samba “O que é que a baiana tem?” e com o qual Carmen Miranda tornou-se internacional, Caymmi em 1941 assina contrato para fazer sua primeira turnê fora do Rio de Janeiro. Assim, passou sete meses viajando pelo Nordeste, estrelando programas de rádio em Fortaleza, Recife e Maceió, além de Salvador. Seria seu primeiro retorno à sua terra natal. 

Em Fortaleza, em 17 de outubro, além de iniciar a temporada na Rádio Clube de Fortaleza, o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), órgão da Presidência da República sob o mandato de Getúlio Vargas, aproveitou a presença de Caymmi para fazer um curta-metragem baseado em sua canção praieira “A jangada voltou só”. O próprio compositor atuou como pescador, que na praia se despede de sua amada antes sair para o mar. A gravação foi feita em Mucuripe mais ou menos um mês depois que quatro pescadores embarcaram na jangada São Pedro para a uma viagem inimaginável do Ceará ao Rio de Janeiro em protesto à falta de amparo social e trabalhista do governo federal a seu ofício, além de denunciar a exploração dessa mão-de-obra no mercado local pelos donos das peixarias. 

Coincidência ou intencionalmente com o propósito de desviar a atenção da ousadia dos jangadeiros ao governo getulista, certo é que a popularidade de Caymmi já era uma referência de Nordeste a partir de sua marca como cantor dos mares nordestinos. Mesmo que o ambiente original a partir do qual essa canção foi inspirada não fosse cearense, mas sim a comunidade de Itapuã, a representação do pescador na luta diária em ambiente hostil, mas paradoxalmente necessário à sua sobrevivência, tinha em Caymmi a personificação artística e simbólica deste imaginário modernista e popular. 

Em Recife, compôs uma de suas canções mais conhecidas, “Dora”. Stella Caymmi, neta e biógrafa do avô, reproduz o que ele revela ter sido a fonte de toda inspiração para a letra: uma mulata que dançava freneticamente ao som do frevo de um bloco chamado Pão da Tarde. Desfilava com a intenção de arrecadar dinheiro para o Carnaval, dali a dois meses. Mas segundo Caymmi a animação da banda e da mulata era tanta que parecia tempo da folia. Letra e música saíram na hora. 

Embora pernambucana, Dora compõe, assim como Marina (do samba-canção homônimo, gênero tipicamente carioca) e Rosa Morena (samba “sacudido” baiano), a galeria de mulheres caymmianas que, independentemente de suas origens, são altivas e cheias de dengo e graça, além de performáticas na dança. Antonio Risério, autor de “Caymmi: uma utopia de lugar”, chama-o de “poeta do bumbum em movimento”. 

Em 2004, num show em Recife da turnê de Nana, Dori e Danilo Caymmi do CD comemorativo aos 90 anos de Dorival, os irmãos inseriram “Dora” no repertório com exclusividade para a apresentação na cidade. Em meio à maioria de sambas baianos e canções praieiras, Nana Caymmi, que depois do pai é a voz que melhor interpreta a mais pernambucana das músicas de seu cancioneiro, ao cantá-la deu uma demonstração emocionada do quanto Dorival Caymmi se rendeu às belezas de Dora e do “Recife dos rios cortados de pontes”. 

O ambiente praieiro de suas memórias soteropolitanas foi irradiado a partir do Rio de Janeiro como representação de um paraíso terreal, onde pescadores, sereias e coqueirais compunham um modo de bem-viver nordestino para além da Bahia, mas a tomando como certa idealização idílica de integração homem-natureza. Com a maior faixa litorânea do país, o que resulta indiscutivelmente vozes marinhas de uma memória popular em folguedos, cantos e manifestações culturais, o Nordeste tem o mar como uma de suas imagens simbólicas mais recorrentes no imaginário nacional. Dorival Caymmi inaugura essa mitologia praieira, confirmado por Luís da Câmara Cascudo, folclorista potiguar, como único do gênero na música brasileira.

Em seu centenário, a obra de Caymmi se reafirma como acolhedora de um tempo, cujo ritmo não era medido pela ansiedade ou celeridade das ações. A maré ditava o vaivém de suas ondas musicais. Tudo para Caymmi tinha seu curso temporal em prol dos sentidos. Cada ponto sensorial tem que ser destacado na sua criação e recepção. Tudo urdido e equilibrado pacientemente para ser contemplado. Gilberto Gil, seu aprendiz, compôs “Buda nagô”, uma das homenagens musicais mais belas para o mestre Caymmi, com os seguintes versos: “Dorival é belo/ Dorival é bom/ Dorival é tudo/ Que estiver no tom”.



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