quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Caymmi: do rádio para o mundo - o musical



O espetáculo musical "Caymmi: do rádio para o mundo", texto e direção de Gil Vicente Tavares, com Cláudia Cunha, Diogo Lopes Filho, Leandro Villa e Marcelo Praddo, encena momentos singulares da trajetória artística e pessoal de Dorival Caymmi (1914-2008) para celebrar seu centenário.

Mapeado em boa parte a partir da biografia escrita por Stella Caymmi - "Dorival Caymmi: o mar e o tempo" (São Paulo: Ed. 34, 2001; 2014) -, o texto de Gil Vicente não se atém a uma cronologia passo a passo da vida de Caymmi, dando ao espetáculo um movimento de ir e vir de histórias engraçadas e tristes, como a onda que leva e traz pescadores, sargaços e memórias do mar.

O diretor teve de fato muito trabalho para escolher as 25 canções de Caymmi para alinhavar os momentos de sua carreira, aliás quase todos eles transformados em música a partir mesmo de suas próprias andanças pela secular São Salvador e pela paradisíaca Itapuã, ou ainda pelas ruas de Copacabana. Faltou, é claro, um punhado de outras canções, inclusive emblemáticas do cancioneiro praieiro como "É doce morrer no mar", em parceria com Jorge Amado, que aparece bem nessa trajetória como fiel amigo de Caymmi. Por outro lado, "Canto de Obá", também com Jorge, pouco conhecida, teve uma marcante encenação, pontuando seu lado religioso.

Intrigas e fofocas, amizade e solidadariedade nos bastidores do rádio em torno da ascensão de Caymmi, que sempre pisou devagar e mesmo famoso não andava de salto alto, foram bem inseridas por Gil Vicente, especialmente na relação com Ary Barroso. Supõe-se que ele andou minando o talento de Caymmi, devido ao sucesso estrondoso de "O que é que a baiana tem?", que substituiu uma música sua no filme "Banana da Terra", estrelado por Carmen Miranda. Dizia que Caymmi não inventou a roda fazendo música sobre a Bahia, já que ele cantava a Terra da Felicidade antes do baiano aparecer. No final das contas, ambos terminaram amigos, até fazendo juntos um disco interessantíssimo, no qual Caymmi, pela primeira vez, grava músicas de outro compositor, no caso Ary, que por sua vez toca Caymmi ao piano.
   
Fazer um musical sobre um compositor do quilate de Dorival Caymmi é uma tarefa dificílima, na medida em que, mesmo sendo canções em sua maioria bastante conhecidas,  o elenco e os músicos devem estar harmonizados para que em suas performances nada falte ou exagere, ou seja, que uma leitura de sua obra seja possível, mas que não se perca a forma límpida, leve e lapidar de sua poética.

A direção musical de Luciano Salvador Bahia, neste sentido, soube valorizar nos arranjos a experiência vocal de Cláudia Cunha, ambos já caymmianos em outras praias e palcos, mas especialmente ela, uma brisa fresca e nova em montagem teatral como atriz. Diogo Lopes Filho, Marcelo Praddo e Leandro Villa também potencializaram seus graves à la Caymmi mas, em alguns momentos, a fluidez deu lugar à tensão, talvez um pouco nervosos em dia de estréia. Experientes que são, ajustaram suas vozes à medida que o texto fazia sentido e se tornava sensível em suas interpretações.

Ponto para Marcelo como Ary Barroso, Jorge Amado e Assis Chateaubriand, dando para cada um a medida ideal do tom para suas caracterizações, seja no gestual seja na voz. Ponto também para Diogo, que faz Caymmi, fugindo também da construção de um personagem com semelhanças diretas com o compositor, mas sem perder a simpatia caymmiana. Leandro no papel de Zezinho surpreende, porque, não sendo ele um personagem conhecido, mas nobre por ser o melhor amigo de Caymmi e responsável por levá-lo à Itapuã e inspirador de "Maracangalha", consegue representar a alegria, a malandragem e a cumplicidade que os dois viveram juntos.    

Os músicos Ivan Sacerdote, Márcio Pereira e Wilton Batata captaram essa nova batida de Luciano Salvador Bahia para a música de Caymmi e apareceram bem na percussão, no sopro e nas cordas. Embora compondo quase um fundo cênico para os atores no palco, o coração do musical batia ali, pois sem eles dificilmente o espetáculo ganharia em beleza sonora.

Concebido para o espaço do Café-Teatro Rubi, os atores perdem às vezes a mobilidade quando vão para a platéia. Devido à quantidade de mesas e cadeiras espalhadas, a agilidade de algumas cenas tem seu timing comprometido, o que não impacta na narrativa geral do espetáculo, mas que sugere uma circulação mais solta e melhor. Aliás, a ideia de usar duas pequenas elevações laterais próximas do público funciona bem para que haja uma interação maior, como também para dinamizar diálogos em ações de espaços e tempos diferentes da narrativa.

O figurino simples e funcional assinado por Zuarte Jr. possibilita a troca rápida de uma peça ou adereço para pontuar a mudança do personagem sem comprometer o ritmo da cena. A camisa listada usada pelos homens nos remete a um tempo de boemia musical carioca dos anos 30 e 40 vivido por Caymmi. O vestido longo de Cláudia também remete tanto a alguns modelos com pregas das cantoras do rádio quanto aos de ombros e braços à mostra usados por Carmen Miranda, adequando-se até à inocência atrevida de Gabriela e sua rosa vermelha no cabelo e à simplicidade da garçonete de botequim.

A iluminação embora trabalhando bem o clima das cenas interiores e valorizando o alcance dos gestos dos atores, individualmente em seus pontos nos palcos, em alguns momentos teve equívocos na operação, deixando-os na penumbra durante suas falas ou nas coreografias. Pelo espaço restrito do Rubi, Eduardo Tudella fez uma luz que não incomodasse o público quando a cena acontece na platéia, dando um certo ar intimista dos night-clubs cariocas onde Dorival Caymmi costumava se apresentar com seus sambas-canções.

"Caymmi: do rádio para o mundo" não tem uma produção cara e arrojada como soa geralmente aos nossos ouvidos o anúncio dos musicais da Broadway ou de São Paulo e Rio. Eles podem ser assim também. Caymmi já foi tema de escola de samba com todo seu apoteótico desfile, com toda sua pompa e circunstância. Mas esse espetáculo baiano consegue traduzir de Caymmi o que ele tem de mais belo: a leveza. E assim somos levados por ele, seguros e tranquilos, nas ondas de suas canções.

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