Estou lendo “Carmem”, de Ruy Castro. Uma das biografias mais bem escritas do gênero. Do biógrafo, falo que duas outras obras suas são igualmente maravilhosas. “O anjo pornográfico”, sobre o genial e provocador Nelson Rodrigues, com suas peças e crônicas de humor cáustico, e “Chega de saudade”, sobre a turminha do banquinho e violão, da Bossa Nova e outras bossas.
Dizem que ele ficcionaliza muito, que foge de uma linha mais jornalística para uma narrativa romantizada do biografado, mas como leitor voraz de biografia, penso que ele consegue ser interessante por conta disso mesmo. A leitura corre inteira, sem rodeios nem floreios verbais, porque a linguagem é, antes de tudo, acessível e precisa na narração dos fatos. Não confundir curriculum vitae com biografia. O primeiro, é uma descrição fechada, direta, objetiva e padronizada. Biografia, não. É uma narração. O próprio autor assume que esta é a sua leitura de Carmen, portanto, “uma biografia” e não “a biografia”. Seria presunçoso, Ruy querer ser o último a escrever sobre ela, até porque é impossível enfeixar toda trajetória artística e pessoal de Carmen, mesmo o calhamaço de quase 600 páginas em que ficou o livro. Embora ele tenha escarafunchado tudo acerca da cantora, vazios, dúvidas, intervalos, lacunas, enfim, não-ditos não puderam ser esclarecidos. Talvez fique para uma outra biografia.
Alguém imagina a vida de Carmen Miranda, a “brasileira mais famosa do século XIX”, sem nenhuma historinha que rendesse um fuxico, um babado? A começar pelo fato de ela não ter que revelar sua nacionalidade portuguesa para não atrapalhar a venda de seus primeiros discos, com a antológica marchinha “Taí”, aquela do “eu fiz tudo pra você gostar de mim”.
Sobre isso, inclusive, eu tenho uma opinião, que foi pensada à medida que escrevia a minha dissertação "Acontece que eu sou baiano: memória e identidade cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi". Como é sabido, foi a partir de “O que é que a baiana tem?”, de Caymmi, que Carmen se transformou em ícone de uma nacionalidade brasileira inventada e, por conseguinte, de toda a América Latina, num contexto político e cultural do século passado bem específico no Brasil (a instauração do Estado Novo, a consolidação do samba urbano e a popularização do rádio) e nos Estados Unidos (a criação da “Política da Boa Vizinhança”, a industrialização da economia e a produção de filmes de Hollywood). Tudo isso junto, contando ainda com o principal, o talento, mudou a vida e a carreira de Caymmi e Carmen.
A situação de Carmen Miranda era tão delicada em relação à sua nacionalidade que durante toda a sua vida ela não conseguiu naturalizar-se brasileira, embora estivesse bastante integrada ao meio social, artístico e cultural do Rio de Janeiro e, posteriormente, fosse vista no estrangeiro como representante da nacionalidade “verde e amarela”.
Quando voltou de sua primeira viagem aos Estados Unidos em 1940, a cantora se apresentou no Cassino da Urca, mas não agradou a todos. No dia seguinte, os jornais estampavam em suas capas que ela tinha voltado americanizada. Falavam que, como não bastasse ser portuguesa, ela ainda mudou o ritmo do samba para o gosto dos americanos. Argumentavam os críticos mais reticentes que o samba não admitia misturas, tinha de ser puro como os brasileiros estavam acostumados a ouvir, como o que ela mesma cantava antes de virar “Brazilian Bombshell”.
Penso que ao assumir a baiana de Caymmi como imagem de seu novo trabalho, ela não só ascendeu profissionalmente, mas também se tornou simbolicamente em brasileira através de uma tradição cultural que era considerada original e “fonte de legitimação” de uma identidade nacional. Era como se a Bahia desse à artista um passaporte brasileiro que ela nunca teve de fato. A brasilidade idealizada nesse período tinha uma autenticidade que passava pelo samba baiano e pela mulher baiana.
Ainda estou na parte em que ela ainda não se descobriu baiana, ou seja, antes de 1939, quando Caymmi, já instalado na Capital Federal lhe apresenta aquele sambinha cheio de dengo e graça, de balangandãs e pano-da-Costa. Inclusive, a capa da biografia é feita com uma foto de Carmen no melhor estilo turbante, barriguinha de fora, brincos e pulseiras de bolotas e aqueles gestuais e olhares melífluos. Ou existe uma outra imagem que a marcou tanto em nossa memória?
Dizem que ele ficcionaliza muito, que foge de uma linha mais jornalística para uma narrativa romantizada do biografado, mas como leitor voraz de biografia, penso que ele consegue ser interessante por conta disso mesmo. A leitura corre inteira, sem rodeios nem floreios verbais, porque a linguagem é, antes de tudo, acessível e precisa na narração dos fatos. Não confundir curriculum vitae com biografia. O primeiro, é uma descrição fechada, direta, objetiva e padronizada. Biografia, não. É uma narração. O próprio autor assume que esta é a sua leitura de Carmen, portanto, “uma biografia” e não “a biografia”. Seria presunçoso, Ruy querer ser o último a escrever sobre ela, até porque é impossível enfeixar toda trajetória artística e pessoal de Carmen, mesmo o calhamaço de quase 600 páginas em que ficou o livro. Embora ele tenha escarafunchado tudo acerca da cantora, vazios, dúvidas, intervalos, lacunas, enfim, não-ditos não puderam ser esclarecidos. Talvez fique para uma outra biografia.
Alguém imagina a vida de Carmen Miranda, a “brasileira mais famosa do século XIX”, sem nenhuma historinha que rendesse um fuxico, um babado? A começar pelo fato de ela não ter que revelar sua nacionalidade portuguesa para não atrapalhar a venda de seus primeiros discos, com a antológica marchinha “Taí”, aquela do “eu fiz tudo pra você gostar de mim”.
Sobre isso, inclusive, eu tenho uma opinião, que foi pensada à medida que escrevia a minha dissertação "Acontece que eu sou baiano: memória e identidade cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi". Como é sabido, foi a partir de “O que é que a baiana tem?”, de Caymmi, que Carmen se transformou em ícone de uma nacionalidade brasileira inventada e, por conseguinte, de toda a América Latina, num contexto político e cultural do século passado bem específico no Brasil (a instauração do Estado Novo, a consolidação do samba urbano e a popularização do rádio) e nos Estados Unidos (a criação da “Política da Boa Vizinhança”, a industrialização da economia e a produção de filmes de Hollywood). Tudo isso junto, contando ainda com o principal, o talento, mudou a vida e a carreira de Caymmi e Carmen.
A situação de Carmen Miranda era tão delicada em relação à sua nacionalidade que durante toda a sua vida ela não conseguiu naturalizar-se brasileira, embora estivesse bastante integrada ao meio social, artístico e cultural do Rio de Janeiro e, posteriormente, fosse vista no estrangeiro como representante da nacionalidade “verde e amarela”.
Quando voltou de sua primeira viagem aos Estados Unidos em 1940, a cantora se apresentou no Cassino da Urca, mas não agradou a todos. No dia seguinte, os jornais estampavam em suas capas que ela tinha voltado americanizada. Falavam que, como não bastasse ser portuguesa, ela ainda mudou o ritmo do samba para o gosto dos americanos. Argumentavam os críticos mais reticentes que o samba não admitia misturas, tinha de ser puro como os brasileiros estavam acostumados a ouvir, como o que ela mesma cantava antes de virar “Brazilian Bombshell”.
Penso que ao assumir a baiana de Caymmi como imagem de seu novo trabalho, ela não só ascendeu profissionalmente, mas também se tornou simbolicamente em brasileira através de uma tradição cultural que era considerada original e “fonte de legitimação” de uma identidade nacional. Era como se a Bahia desse à artista um passaporte brasileiro que ela nunca teve de fato. A brasilidade idealizada nesse período tinha uma autenticidade que passava pelo samba baiano e pela mulher baiana.
Ainda estou na parte em que ela ainda não se descobriu baiana, ou seja, antes de 1939, quando Caymmi, já instalado na Capital Federal lhe apresenta aquele sambinha cheio de dengo e graça, de balangandãs e pano-da-Costa. Inclusive, a capa da biografia é feita com uma foto de Carmen no melhor estilo turbante, barriguinha de fora, brincos e pulseiras de bolotas e aqueles gestuais e olhares melífluos. Ou existe uma outra imagem que a marcou tanto em nossa memória?
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