segunda-feira, 18 de junho de 2007

Da janela se vê o mar - conto

uma história sobre amor de homens

Para Diomedes, in memoriam



Não o amor, mas os arredores é que valem a pena...
Fernando Pessoa

Passava em frente à cafeteria onde costumávamos tomar capuccino com torta de morango. No exato momento em que observava os enfeites luminosos de Natal da entrada, um cliente abriu a porta e pude ver rapidamente a mesa onde eu e Juliano sentávamos. Aquele cantinho era o lugar para atar ou desatar os nós de nossos sentimentos. Lembranças vêm assim, num turbilhão de emoções que nos deslocam. Estava com pressa, tinha de me encontrar com meu novo namorado, mas parei por uns segundos no meio da calçada. Fiquei em suspensão pelos fios da memória... Uma marionete manipulada por Juliano que me levou para dentro do Café Atlântico. Foi ele mesmo quem o descobriu, meio escondido numa rua sem movimento do Centro. O garçom me reconheceu, deu aquele sorriso receptivo e apontou para a mesa como se eu a tivesse reservado. Embora os donos, um casal gay de Porto Alegre, tivessem feito uma reforma no interior, ampliando a entrada, nem a decoração nem o clima acolhedor mudaram. As cadeiras de veludo salmão continuam tão confortáveis quanto antes e as mesas ainda tinham tampo de vidros translúcidos. Podíamos ver nossos pés se cruzarem e se acariciarem debaixo da mesa quando nos reconciliávamos. Ou nervosos e distantes quando não conseguíamos nos entender.

- Não, não espero por ninguém, respondi ao garçom.
- Cadê aquele seu amigo?
- Juliano? Meu ex-namorado?
- É.
- Não o vejo há meses.
- Ah.. Vai pedir torta de morango e capuccino sem chantilly?
- Com chantilly, Juliano era quem não gostava.
- Ah, desculpe, é que depois de tanto tempo... Com licença.

No primeiro salão, onde eu estava, só havia um jovem sentado perto da janela. Sobre a mesa, um envelope de carta pequeno. Ele parecia tenso, ansioso. Roía as unhas e mergulhava diversas vezes o saquinho de chá na caneca vazia. Olhava para fora, esticava o pescoço para ver melhor a rua, passava a mão pelos cabelos compridos. Fazia um estilo grunge. Tinha um jeito meio rebelde, de afronta, devia ter uns dezessete, dezoito anos.

Na parte dos fundos, ficava a área para fumantes, mais cheia. Ninguém conhecido. Decidi ficar apenas quinze minutos, mas todos meus sentidos tinham sido invadidos por fragmentos de um tempo que eu insistia em não mais retomar. Juliano me prende nessa cafeteria, por quê? Precisava de uma tesoura para cortar aqueles fios que me impeliam a comer a torta e a sentir o gosto de sua boca agridoce-morango, era mais gostosa a torta ou sua língua açucarada?

- Mais alguma coisa?, perguntou o garçom.
- Hã?! Não.
Lembrei-me dos momentos em que eu chegava antes de Juliano e ficava na expectativa de vê-lo entrar de sorriso largo, como o do cara que entrou agora... Ele se dirigiu para a mesa do jovem de cabelos compridos. Os lábios cerrados de um não se correspondiam com o brilho do sorriso do outro. Os tais nós precisavam ser atados naquela mesa. Tão logo se sentou, o rapaz do sorriso recebeu a carta. Tentei ouvir o que falavam, mas a voz de Teresa Salgueiro, de Madredeus, desviou minha atenção para um pôr-de-sol deslumbrante em Lisboa, à beira do Tejo. Foi lá que conheci Juliano. Eu estava em pé, na mureta de proteção do cais, e ele sentado na ponte de atracação, poucos metros à minha frente. Com fones no ouvido, distraía-se com uma música. Os óculos escuros impediam que eu visse seus olhos, não sabia se olhava para mim fixamente ou se cochilava, o que era perigoso, porque poderia cair no rio. Depois de alguns minutos, quis conhecê-lo e fui até lá. Toquei em seus ombros largos e musculosos. Ele desligou o cd portátil, tirou os óculos e abriu um sorriso encantador.

- Não é perigoso você sentar aí, pode cochilar e...
- Teria você pra me salvar.
- Salvaria sim, ainda faria respiração boca a boca.
- É a melhor parte do salvamento...

Rimos de nossa própria ousadia. Dois estranhos, que nem seus nomes foram revelados, já se ofereciam sem restrições. Não estávamos ali apenas para ver o fim de tarde, mas procurando também uma companhia para nossa solidão. Fosse para um bate-papo casual fosse para um sexo rápido num motel barato, decidimos ir ao Cais Sodré no momento certo. Ele era estudante de intercâmbio na cidade, eu passava férias em casa de amigos. Nossas afinidades iam além do gosto de ler Pessoa e Quintana, assistir a Almodóvar e Winders, ouvir Madredeus e The Cranberries; elas convergiam para o mesmo prazer de um estar olhando para o outro. Tínhamos encontrado em cada um o que há tempos procurávamos. E já saímos dali apaixonados. Subimos para o Bairro Alto e jantamos num restaurante de onde pudemos observar o Tejo até a Torre de Belém... Toda cidade tem um cheiro, e Lisboa nesse momento exalava um perfume cítrico-amadeirado que me inebriava, ou seria o perfume de Juliano que se espalhava por onde passávamos? Só sei que senti uma vontade de abraçá-lo com força, e o fiz como quem tinha a certeza de que um dia poderia perdê-lo... Lisboa compunha nossa geografia durante os dias em que percorríamos suas ruelas, ladeiras e miradouros, como um casal feliz em lua-de-mel. Em outros momentos, como o da cafeteria, quando era grande o silêncio e eu aguardava o milagre num sonhar acordado, Lisboa se instalava de novo em mim. Embora não nos víssemos mais, nem sabia se ele estava em Salvador, louvava a saudade por alguns minutos, talvez com desejo de reencontrá-lo para ver de novo seu sorriso...

O toque do celular me trouxe para a realidade, era meu namorado que já me esperava na saída do trabalho... O café tinha esfriado, só comi mais um pedaço da torta e pedi a conta ao garçom. Junto com a despesa, veio um bilhete.

- De quem é?
- De um daqueles dois que estavam sentados ali.
- Quem?
- O que parecia com aquele seu amigo.
- Juliano?
- Acho que era ele.

Abri o bilhete e reconheci a caligrafia. Meu Deus! Com que olhos eu estava que não o vi? Por que não falei com ele? Na sala, outras pessoas conversavam; a mesa encostada à janela estava agora ocupada por uma velha, que tomava um suco. Virei a cabeça para procurá-los na sala de fumantes, e nada. No bilhete, a mensagem: O Tejo desaguou nossas lembranças no mar, não sabemos em que praia irão aportar... Juliano.

- Eles já foram há muito tempo?
- Quase uma hora.
- Como, se estou aqui há pouco mais de quinze minutos?
- Não, há mais de meia hora.
- Ah, devo ter perdido a noção do tempo... Foi a primeira vez que você os viu juntos?
- Sim.
- Eles brigaram?
- Houve um pouco de discussão no começo, mas terminaram felizes.
- E a carta?
- Rasgada sobre a mesa, logo depois que saíram joguei no lixo.
Paguei a conta e saí às pressas. O bilhete na mão, amassado e molhado de suor, provava que Juliano estava mais perto de mim do que imaginava. Aquele cara não era o mesmo Juliano, só o sorriso é que parecia, ou era de verdade? Se fosse ele, ainda assim tinha emagrecido, deixou a barba crescer, usava uma boina, roupas diferentes... Por isso não reconheci.

Da mesma forma que começamos o namoro, sem delongas, ele se afastou como se fugisse de algum mal. Confesso que uma das últimas reconciliações, depois de desentendimentos por causa de algumas revelações que eu fiz, o nó não foi totalmente atado, ficou ainda frouxo. Ele disse que visitaria parentes no interior, voltou depois de uma semana e não me ligou. Procurei diversas vezes em sua casa, dei telefonemas, escrevi cartinhas... Nenhuma resposta. Recebia informações desencontradas de que estava com outro amor, seria o jovem de cabelos compridos?, de que passava dias ali e acolá em casa de amigos que eu nunca tinha ouvido falar, de que voltou para Europa...

- Onde você estava?, perguntou com raiva o meu namorado.
- Desculpe, meu bem, é que tive de fazer uma coisa importante.
- Você sempre se atrasa... O que foi dessa vez?
- Coisas minhas.
- Vamos agora fazer o quê? Perdemos a sessão das 18, agora só a das 21.
- O que você sugere?
- Tem uma cafeteria aqui perto que há muito tempo não vou. Vamos dar um tempo lá.
- Que cafeteria?
- Atlântico. Lá você me explica melhor que “coisas minhas” são essas que estava resolvendo.
- Por que não vamos pra minha casa? Assistiremos ao filme amanhã.

Não foi fácil convencê-lo a desistir do cinema e, principalmente da cafeteria. Aquele lugar me transforma, perco o sentido. Ao contrário de Juliano, Gustavo tinha poucas afinidades comigo, era mais nervoso e exigente. Seus ciúmes chegavam a ser mais constrangedores do que os de Juliano. Era grosseiro e intempestivo, mas sincero. Juliano era fingido e escorregadio, mas educado. Fomos para meu apartamento, onde pudemos ficar mais à vontade. Como dizer a ele que eu estava com um amigo, sem ter estado? Seria capaz de me matar se dissesse que foi com meu ex-namorado, de quem não queria ouvir falar. Dizia ele que Juliano não foi homem o suficiente para me assumir, que fugiu envergonhado quando soube que eu era transexual. Para evitar mais frustrações, disse logo a Gustavo quem eu era quando o conheci. “Nunca amei tanto uma mulher”, me falava sempre ao final de um pedido de perdão por causa de um desatino seu. Falaria o mesmo depois de brigar comigo quando explicasse as tais “coisas minhas” que me fizeram atrasar o encontro. E falou mais: “Quero ter um filho com você.”

Não era tão forte quanto Juliano, mas me levou sem nenhum esforço para a cama. Abrimos o vinho que compramos para a ceia de Natal e tomamos entre um beijo demorado e outro, entre um sussurro e outro, entre um riso e outro. Atravessamos a noite bêbados de amor e sexo. Em um momento apenas me lembrei de Juliano. Ele nunca me fez sentir um gozo tão profundo e verdadeiro quanto Gutinho me fez naqueles milésimos de segundos. Eu me rendi completamente a ele. Sim, teremos um filho, falei baixinho no seu ouvido. Você é minha mulher, declarou ele.

Enquanto Gustavo tomava banho, vesti meu roupão e abri a janela da sala. Era madrugada ainda, mas aos poucos a silhueta da ilha de Itaparica aparecia do fundo da baía em meio à névoa. Mais perto de mim, logo em frente, o mar rolava na praia algas, sargaços, espumas, conchas e lembranças...

Talvez ali mesmo eu cavasse um buraco e enterrasse o bilhete de Juliano...

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