domingo, 3 de junho de 2007

Caymmi e Eu


Impossível não se emocionar com a presença plácida e melodiosa de Caymmi. Há sete anos pesquisando sua obra, que resultou em dissertação de mestrado em 2004, nunca tive a oportunidade de estar a seu lado pessoalmente. Por diversas vezes, tentei um encontro no Rio ou em Pequeri, em Minas Gerais, mas nunca acertamos os horários. Só por telefone podíamos conversar... Horas que, aos poucos, foram diminuindo para minutos, até chegar a segundos. Ultimamente seu fôlego estava curto e sua voz sumindo. Minha interlocutora passou a ser Stela Caymmi, sua neta, também pesquisadora, que me dizia as novidades do Vovô.

Para mim, a vinda de Caymmi a Salvador depois de onze anos, era uma forma de me encontrar e entregar-lhe meu trabalho de pós-graduação e, especialmente, pedir-lhe a benção, como faço com minha avó Tarcila, de idade quase igual a dele. E, quando o vi chegar ao Teatro Castro Alves, para a entrega do Prêmio Jorge Amado pelo conjunto de sua obra, eu não me contive de emoção, pois estava diante de uma lenda viva da música popular brasileira, um dos remanescentes da geração de ouro do rádio nacional, companheiro de outros tantos bambas e rainhas da música, como Assis Valente, Ary Barroso, Pixinguinha, Dalva de Oliveira e Carmen Miranda. Mais: estava frente a frente daquele que me acompanhou, mesmo que simbolicamente com suas gravações, nas noites de completa solidão em João Pessoa e em Florianópolis, quando escrevia minha dissertação.

Alguns dizem que este prêmio representa as pazes entre ACM e ele, já que, como se sabe, durante muito tempo, fagulhas de discórdia chisparam da relação entre os dois. Quem conhece Caymmi tem certeza de que ele é de paz, não é vaidoso, nem bajulador, daí que esse mau humor foi criado por ACM porque ele não admitia que Caymmi não beijasse a sua mão ou não batesse à porta do palácio para pedir-lhe algum favor, como se isso fosse uma obrigação dos artistas baianos. Não. Caymmi recebe esse prêmio porque ele merece e antes de qualquer político alardear que a Bahia não seria o que é por conta dele, em termos de representatividade cultural para o País, o compositor, que Jorge Amado chamava de “o cantor das graças da Bahia”, há anos já vinha contribuindo para isso sem atravessar nem maltratar ninguém.

Aliás, muito do que foi capitalizado politicamente, nas três últimas décadas, nesta área das artes e da cultura baianas, deve-se mais a seus artistas, escritores e intelectuais, do que propriamente a governantes. O fato de Caymmi não morar na Bahia, não lhe tira a naturalidade baiana, não lhe apaga as memórias da infância e da adolescência tampouco suas afetividades e interações pessoais e coletivas.

Ninguém ousa lhe tirar o que já é próprio de sua experiência cultural e subjetiva, porque, em sã consciência, todo o mundo sabe que é impossível. Talvez seja mais prazeroso, para ele, vir matar a saudade quando pode, do que estar aqui. A volta do filho pródigo à casa dos pais tem um sabor de recomeço, que não é o mesmo da permanência, pois se fosse desta forma, o olhar ficaria acostumado e não veria o diferente, o novo. Ele mesmo disse no documentário feito pela TVE, “Mestre Caymmi da Bahia”, que gostaria de estar agora com 18 anos, para, com o olhar daquela sua idade, ver a Bahia (leia-se Salvador) de agora. Percebam o movimento de ir e vir - de passado-presente-futuro fundidos, mas intrinsecamente separados devido a elementos simbólicos próprios de cada tempo seu - que Caymmi imagina para estar sempre presente na Bahia. É uma concepção de existência de quem só atravessou quase um século de vida tem a autoridade de criar.

O agradecimento silencioso de Caymmi aos aplausos recebidos durante a cerimônia no TCA foi uma das partes mais emocionantes. Sem poder ficar em pé, nem usar sua voz potente, Caymmi usou apenas os olhos para agradecer. Eu, que estava pertinho do palco, tirando as fotos, vi seus olhos cheios de lágrimas. Os meus também estavam.
A benção, Caymmi.

Nenhum comentário: